03/12/2010

Como funciona o Sistema de Ação Cultural brasileiro, segundo Betânia Tanure de Barros

Por Luiz Bernardo Barreto

A análise de Tanure apresenta uma hipótese verdadeira básica, estabelecida pelo caráter cultural atuante. As organizações brasileiras são caracterizadas por ações administrativas formuladas por um contorno cultural que as influenciam. O que define a cultura da organização são esses contornos, que se combinam entre si. A análise de Betânia Tanure de Barros, sobre as organizações que fundam o sistema de ação cultural brasileiro, se formula nos aspectos culturais nacionais sem reivindicá-los.

Tanure pontua que a partir da Revolução de 30, pode-se melhor entender o desenvolvimento das relações capitalistas de forma acelerada, com grande influência cultural americana. Ocorre, nessa concepção, o surgimento que a autora chama de árbitro do julgamento, exemplificando as atitudes artísticas já não mais feitas por pessoas do próprio setor, passando a serem feitas pelo mercado, ou seja, pelo consumidor, surgindo os juízes de seu valor.

A burocracia se “profissionaliza” no surgimento dos colarinhos brancos, indicando as mudanças na escala dos valores. A sociedade brasileira passa, então, de uma sociedade rural sob influência da Europa, para influência americana. Tal sistema cultural brasileiro, em analogia feita por Tanure, é um tecido que tem fios interligando, transmitindo e recebendo impactos e reflexos entre si, onde se constituem mais como uma rede auto-sustentada em suas articulações, do que um sistema linear que tem uma única origem e fim. Eles, os fios, são caracterizados pelas relações dos traços culturais. Os traços culturais seriam os nós, naturais, desse tecido.

Segundo a autora, o sistema de ação cultural brasileiro se estrutura em quatro grandes subsistemas: o institucional, o pessoal, o dos líderes e o dos liderados. O institucional seria os traços culturais no espaço da “rua”. O pessoal compõe o espaço da “casa”. O subsistema dos líderes faz um corte, reunindo traços encontrados nos que detêm o poder, e o subsistema dos liderados concentra os aspectos culturais próximos dos subordinados ao poder. Isso é uma visão dinâmica e relativa. Ora somos líderes, ora somos liderados. Ora atuamos impessoalmente, ora pessoalmente.

Essa relação é denominada pela autora por “englobamento”, no que o conjunto de traços culturais se sobrepõe, formando um único conjunto e fabricando subconjuntos. Dessa forma, tanto o indivíduo pode influenciar a pessoa (profissionalização da empresa familiar – EX; contratação por indicação), como a pessoa pode influenciar o indivíduo (relações de pessoas que se sobrepõem a critérios formais e regulamentados – EX; aprovação em concurso público). Seria a familiarização ou tribalização.

Isso estrutura uma idéia de que, se todos são líderes, ocorre um processo de horizontalização, num estado avançado de igualdade, e quando são todos liderados, verticalização, num estado de grande distância do poder. O sistema de ação cultural brasileiro é definido pelo processo de funcionamento da estrutura cultural. O que garante a ação da estrutura cultural é sua operacionalização, que se dá por estratégias construídas pelo conjunto social, e subordinadas a elas, quando num curto prazo.

Nesse subsistema há quatro interseções, caracterizadas pela concentração do poder, personalismo, postura de espectador e pelo evitar conflitos. Os traços culturais especiais articulam esses subsistemas, sendo responsáveis pela não ruptura do sistema totalmente. Entende-se como esses traços o paternalismo, a lealdade às pessoas, o formalismo e a flexibilização. O paternalismo e a flexibilização fazem a junção dos subsistemas institucional e pessoal. A aproximação dos líderes e liderados é constituída pela aproximação dos traços de lealdade às pessoas e o formalismo. Ainda há a impunidade como traço central, que alimenta o subsistema dos líderes, liderados, institucional e pessoal. A combinação de todos os traços constitui e rege o sistema de ação cultural brasileiro.

O paternalismo nasce da combinação da concentração do poder e do personalismo, o que gera vários desdobramentos da nossa cultura. A conceituação de poder usada por Tanure vem de Weber, numa concepção de autoridade legítima, encontrada em todos agregados sociais. A legitimidade coloca em aceitação as bases nas quais a autoridade se estabelece, podendo ser a tradição, os princípios racional-legais ou o carisma. Exemplificando, podemos citar o direito do filho primogênito de ocupar o cargo como uma base tradicional. Já a autoridade formulada em princípios racional-legais, se estrutura quando a pessoa tem o direito de votar no seu representante governamental. O carisma é a base que dá “legitimidade” ao personalismo, fazendo do discurso uma ferramenta de absorção com poder de ligações.

O movimento de formação social brasileiro, no que diz respeito à ação cultural, se constitui na junção das estruturas de poder (autocracia, poliarquia limitada e poliarquia plena), com as principais bases de autoridade. Isso resulta numa “confusão” no que diz respeito ao entendimento do que é classe média e classe operária sem hábito de organização. Essa última marginalizada a uma constante pobreza. O início da década de 90 não amplia a poliarquia brasileira, mas reconhece o poder político aos trabalhadores sindicalizados. A tendência urbanizante trouxe, da zona rural e de regiões menos desenvolvidas, grandes massas com baixo grau de escolaridade e organização.

A sociedade brasileira criou uma concentração do poder baseada na hierarquia e subordinação, estabelecendo a manutenção da autoridade, se valendo da força tradicional do militarismo e do poder racional-legal. É a “política” do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Isso leva a crer que, no Brasil, a própria palavra cidadão se funda numa nomenclatura negativa, servindo para posicionar alguém que está na desvantagem, em inferioridade, sendo uma cultura que desabilita o cidadão como o núcleo de poder.

Por vezes esse poder se concentra em líderes (no caso do Brasil) que causa uma dependência do cidadão com o governo. Ser forte, centralizador e ter um rosto personalizado ainda é o padrão de líder mais votado no país. O ator do processo se pauta na troca objetiva de trabalho por remuneração, com aspectos afetivos, trocando na verdade a dedicação e colaboração não atritosa, não crítica, não reflexiva, pelos laços de intimidade pessoal. Isso resulta numa dependência continuada de liderados pelos líderes.

O apego excessivo as formalidades é umas das maneiras significativas e relevantes de como nossa cultura visa fugir às incertezas do futuro. O diálogo é substituído pelo ato de comunicar. O formalismo se mostra onde se intencionam regular as relações entre líderes e liderados, objetivando criar mecanismos de uma eventual estabilidade. Nossa dependência se orienta por autoridade externa, sendo essa dominadora, limitando nossa consciência crítica. Comumente, o Brasil adota um padrão americanizado em suas vias urbanas.

Também há o processo de infantilização, emergindo numa falta de vontade própria do individuo. Então se transfere a responsabilidade, pois se o individuo não se “senti” enquadrado no resultado que esse poder pode desfrutar, ele o delega para a hierarquia que pode detê-lo, gozá-lo. Isso torna nossa capacidade de realização por autodeterminação reduzida em extremo. Seria a cultura do “estar fazendo” pequenas reformas sem avanços significativos. Seria o fatalismo e passividade na socialização brasileira.

A saída, nesse sentido, é a esperança em tempos melhores e confiança em um Deus, que oferece uma riqueza natural que deixa o indivíduo mais seguro. Mas na vida real, o que acontece é uma aceitação silenciosa das normas e regras, com um grande abismo entre a conduta concreta e as normas prescritas. Utilizam-se processos e canais extralegais, tidos como normas e regulares pela consciência de um todo coletivo. Há uma ética de permissão para uma separação social, por vezes imposto por leis e regulamentos idealistas (subjetivos) e protecionistas (favorecimento interno).

Dessa forma, há um buraco enorme entre o direito e o fato que caracteriza e justifica o formalismo, sendo esse mais o que parece uma estratégia relativa a ambos, arraigada na formação brasileira, e bem particular. Isso gera nepotismo, favorecimentos e suborno, caracterizando instabilidade e insegurança. Inúmeras normas surgem com a legislação, que se mescla entre a especificidade e abrangência da causa. Isso vem trazer uma estabilidade nas relações sociais apenas aparente.

Num exemplo, citemos nossas várias reformas monetárias, que se dar por um ciclo formalístico, podendo decorrer de duas vertentes, o da paralisia total do sistema e o da desmoralização completa, sendo esse último, citado por Tanure, o fenômeno encorpado no Brasil, uma vez que há uma busca incansável por novos estágios de construção nacional com as reformas legislativas, por exemplo. Há uma rigidez maior se a lei tiver que ser aplicada para aquela pessoa que se encontra fora das relações, e uma flexibilidade maior na interpretação dessas mesmas leis para as pessoas de nossa relação, ou com autoridade. Ou seja, enquanto as normas no Brasil são bastante específicas, nosso ajustamento se faz por uma interminável interpretação do processo, cujo resultado depende da hierarquia de quem se encontra do lado a ser julgado.

A impunidade se mostra aos líderes, fortalecendo sua posição de poder, aumentando no âmbito da instituição o grau de consistência nos traços culturais brasileiros (o senador que é caçado, mas não punido – o deputado que renuncia e depois se elege – o empresário que é condenado e não é preso, etc). Ai, a lei é indiferente, e os direitos individuais, monopólio de poucos. Isso faz surgir uma apatia, sendo o brasileiro cada vez mais espectador. Nesse contexto, a sociedade transforma em heróis aqueles que transgridem a lei, como traficantes, bicheiros, ou simplesmente aquele cara que religa a água ou luz, cortada de uma comunidade por falta de pagamento. Os heróis de relevância que produzimos, vem do esporte, por exemplo, e nunca do segmento político.

Betânia Tanure de Barros vem conceituar que, nesse sentido, a sociedade caminha com características tribais, por não “eleger” uma referência maior pactuada fortemente entre os grupos da sociedade, tendendo a desagregação social, enquanto sociedade institucionalmente constituída.

Os seres humanos que trabalham na organização, o subsistema pessoal, se pautam por um estado de segurança e harmonia, lealdade pessoal e negação dos conflitos, sendo esse subsistema contextualizado no personalismo. A lealdade pessoal (no âmbito do subsistema pessoal) é a contrapartida ao formalismo (do subsistema institucional). Seu objetivo é organizar, articular, os subsistemas dos líderes e liderados, pelo espaço que rodeia as pessoas.

O mecanismo de interligação entre os vários grupos de uma sociedade está centrado na pessoa, essencialmente nos líderes. A confiança é depositada no líder que passa a ser o elo da rede que compõe os segmentos. Vê-se o aspecto da “casa” (na concepção de Roberto DaMatta) como modelo de identificação familiar, extensivo e intensivo. A lealdade às pessoas tem um preço que é a segurança ou pressão dos membros do grupo. As redes de relacionamento pessoal no Brasil fortalecem o formalismo, que, conseqüentemente, reforça a lealdade pessoal. Essa é uma condição para o sistema fluir.

Tanure vem dizer que, parece que a sociedade brasileira optou por um modelo de envolvimento mais coercivo-alienativo, onde a lealdade é a pessoa do líder, e esse faz da sedução afetiva sua arma de comprometimento e coesão social. No caso de conflitos, se usa das triangulações, com a figura do mediador de conflitos.

É natural na concepção da ação cultural brasileira não buscar um objetivo claro e progressivo, sem ação concorrencial, não tendo estímulo, sem agressividade para a realização. O processo se faz mais importante do que a realização. A competição é feita de forma cooperativa, com ajuda da intermediação governamental. Essa é a forma que o Brasil adotou para realizar seus projetos nacionais, não formulando uma competitividade aberta estimulante. A competitividade nessa instância está do lado de dentro, tratando de evitar conflitos de forma declarada.

O que dá a articulação ao sistema institucional e pessoal ainda é o subsistema dos liderados, sendo esse um dos mais importantes da ação cultural brasileira. É o traço da flexibilidade (adaptabilidade). Essa é a nova versão do “jeitinho”, nascida do formalismo com uma característica de “criatividade” e “pragmatismo”. Esse “jeitinho” é o marco central do nosso sistema de ação cultural.

Em toda essa contextualização, o Brasil se mostra um país harmônico, alegre, pobre economicamente no que diz respeito à maioria dos cidadãos comuns, e com senso de espectador que não deixa fluir uma maior absorção crítica dos fatos. Isso serve de admiração para as instituições estrangeiras, porque é nessas características que o jeitinho de inicia. Seria uma admiração da ligação do forte com o fraco, do líder com o liderado, do poder concentrado com a inexistência do poder, do divino com o profano (muito presente nas religiões) e daí por diante. Porém, desenvolvemos a capacidade de convivermos com os opostos (sem citar os casos aparentes de xenofobia entre regiões e credos, diga-se de passagem, a pouco tempo ocorridos, de forma fluente por redes sociais virtuais), sendo essa a base do nosso estilo de administrar.

Sem comentários: