Fotos e texto por Luiz Bernardo Barreto
Pesquisa Orientada pela Prof. Aline Grego Lins
(esse texto é parte da pesquisa de Especialização em Jornalismo Cultural feita por esse pesquisador)
Coco litorâneo, olindense, com resposta feminina, inovação na instrumentalização que aborda instrumentos atípicos ao coco, como flauta doce e cavaquinho. A forte característica do coco de Wilson Bispo dos Santos, o Mestre Ferrugem, está marcada pela presença do pandeiro, que, junto com a canção falada, compõe a maior parte da música. Ou seja, a junção da ritmia do pandeiro com a palavra. A resposta do coco é feita por três vozes femininas, uma zabumba, a percussão, a voz e o pandeiro do Mestre Ferrugem. Também existe o triângulo nessa composição sonora. Também é possível perceber a instrumentalização das palmas, característica forte no coco do interior. As letras do Mestre Ferrugem, entre outras coisas, lembra o cotidiano do sertanejo, que vive na serra e é vaqueiro e tem como obrigação tocar o gado. Mas em seus versos também vemos alusão à vida cotidiana do litoral. A zabumba apresenta-se na musicalidade do coco na hora da reposta, na hora do refrão, como em outros cocos litorâneos. Enquanto isso, a letra é rimada pelo pandeiro e ganzá.
Em entrevista, realizada no dia 28 de maio de 2008, Mestre Ferrugem contou a este pesquisador parte da sua história no coco, e os desafios que já enfrentou. Falou dos seus cocos de repente, respondendo a desafios feitos na hora, de improviso, suas emboladas e as influências que recebeu. Ferrugem é um mestre de coco aberto às novas tendências na musicalidade do coco. A prova é sua aceitação aos instrumentos atípicos ao coco, como flauta doce e cavaquinho, conga, agogô, entre outros.
Nascido no dia 12 de dezembro de 1950, 58 anos, Wilson Bispo dos Santos, olindense, “carrega o coco na veia”. Ele conta que o apelido “Ferrugem” vem da época do colégio, por seu rosto ser cheio de sardas. “Botaram muita qualidade de apelido em mim, mas não colou nenhum, só colou Ferrugem” 11. Ferrugem começou a freqüentar coco ainda bastante criança, por ser raiz na sua família, tanto paterna quanto materna. Foi discípulo, como ele mesmo conta, até os 17 anos, sendo batizado pelos seus mestres com direito a banho de cerveja na cabeça e no pandeiro, sendo esse “cruzado” com a cerveja derramada. “Discípulo é aquela pessoa que carrega a bagagem dos cantores. Eu cantava, mas quando eles, os mestres, mandavam. O discípulo não pode passar na frente dos mestres”. Como todo Mestre teve, ou tem Mestre, Ferrugem fala dos que o influenciaram a cantar o coco. Dentre vários, ele cita Manoel Farias, Antônio Rochinho, Zé Pretinho, Luiz de Marcílio, Benedito Grande, Luiz Boquinha, Cachito, Fome, Ingüento, Calú Calado. Essas pessoas também foram Mestres daqueles que hoje são Mestres de coco em Olinda, como Galo Preto, Ana Lucia e Selma do coco.
A característica de disputa é muito forte e presente no coco de Mestre Ferrugem. A cantoria, principalmente no passado, era de cunho desafiador, uma vez que o coco era uma “batalha” de palavras. “Eu gostava de cantar muito, mas eu gostava mesmo era de derrubar cantor. Por que tem uns ‘cantozinhos’ sem-vergonha por ai que diz que é cantor sem saber cantar. Mas depois que eu comecei a cantar sério, eu acabei com esse negócio”, lembra, o Mestre, com nostalgia dos tempos de batalha no coco .
Ferrugem afirma que já compôs 208 músicas e que lembra de todas. Para ele, a letra parte da imaginação, que por sua vez, é ilusão. “Quando eu escrevo 5 ou 6 palavras doces, ai vem 3, 4 palavras salgadas. Quem escuta meus cocos, direitinho, diz que eles são muito salgados. Se tem mulher, eu canto pra mulher. Se tem homem, eu canto pra homem. Se tem doutor, eu canto pra doutor. Se tem promotor, eu canto pra promotor. Se tem professor, eu canto pra professor. Chega tudo em minha mente e os versos são feitos na hora (essa é a característica do repente). (...) Se tem uma roda de coco aqui, enquanto não estão cantando, todos são amigos. Agora quando estão cantando todos querem se mostrar, ser o ‘cancão’ de fogo”. Ferrugem explica que no processo de produção das suas letras, ele procura ordenar as consoantes. Segundo ele, elas, as letras, aparecem de repente, e daí ele as organiza no papel. Esse é o coco de embolada, que é trabalhado e oficializado como música, diferente do coco de repente, que sai na hora e é “registrado” depois do processo já criado. O coco de repente surge no decorrer de uma batalha, ou de uma criação individual, e também é feito pelo Mestre Ferrugem.
Ferrugem quando perguntado sobre as diferenças existentes no coco pernambucano, explica que só no litoral tem três tipos de coco: o coco de repente, o de embolada e o praieiro. “O coco praieiro é aquele que só tem o refrão e a resposta. O de embolada é esse que eu canto (escrito e ensaiado). Já o de repente é esse que Caju e Castanha canta (improvisado na hora)”. O coco de repente é mais presente quando a roda é feita nas comunidades e com os amigos. É quando a “brincadeira” do coco não precisa de ensaios e muito compromisso. O coco vigente nos palcos, nos eventos e shows é o coco de embolada, por já estar oficializado e ensaiado. Sobre as características dos cocos do litoral, do agreste e sertão, Ferrugem afirma que a principal diferença está no batuque. “O coco aqui de Olinda é batido de uma maneira, o coco do agreste já é batido de outra. O coco do agreste é quase a mesma coisa de uma ciranda. Ele não tem repente. No coco praieiro, quando o cantor ta cantando, ilustrando, versando a música, os instrumentos têm que cair
(baixar o som). Quando entra a resposta, os instrumentos voltam e se apresentam. Quando o cantor começa novamente, eles baixam novamente. Já o coco do agreste tem uma batida parecida com a da ciranda, que não tem ‘caída’ (na instrumentalização). Tanto faz o cantor tá cantando baixo, como alto, a batida é uma só. Ela não diminui nem aumenta. E isso dá muita diferença para o cara que se diz o cantor. Tem grupo que não canta com instrumento nenhum. É somente no pé e na mão”.
Ferrugem conta uma história curiosa sobre o princípio da utilização dos pés no coco agrestino e sertanejo: “Muitas vezes chegava uma pessoa convidando um amigo para tapar uma casa. Não tinha problema. Eram quinze, vinte homens, pois se colocava o barro no chão e todos maçavam o barro, cantando e batendo palmas. É por isso que tem muitos cocos por ai que não tem instrumento nenhum”.
Sobre a instumentalização do seu coco, percebe-se que o pandeiro é de marcação, pois começa e termina certo na música. Por várias vezes é esse instrumento que dita o ritmo dos outros instrumentos. Um outro instrumento de marcação de bastante importância para o Mestre Ferrugem é o ganzá. “O ganzá é um instrumento de marcação bastante importante, e nem todo mundo sabe tocar. Tem que aprender (...) As congas são instrumentos que te fazem subir e descer. Às vezes tu quer fugir delas, mas elas não deixam”. Ferrugem esclarece que a introdução do cavaquinho e a flauta doce, no coco presente em seu cd, servem para harmonizar a música. “Harmonia é uma pessoa começar e as outras pessoas encorpar. É por isso que todos os grupos têm a ‘obrigação’ de ensaiar (...) dinheiro é muito bom, mas harmonia é melhor”, brinca.
O Mestre é aquele que diz o que tem que ser dito na resposta do coco. É aquele que, na maioria das vezes, com o pandeiro, dita o ritmo do ganzá, zabumba, e outros instrumentos adotados pelo coco. Mas, por ser coco litorâneo, nas letras existem registros do dia-a-dia do pescador. Também há referencia religiosa em sua musicalidade, como é demonstrada na música “Nossa Senhora”. A característica contemporânea da musicalidade, além da inovação da flauta doce e do cavaquinho, está na última faixa do cd, “A derrubada – Chill Out” que mescla bits de música eletrônica e bateria sampleada, além da referência em inglês. Uma forte característica do coco interiorano na obra do Mestre Ferrugem encontra-se na segunda faixa do cd. A música “De longe ouvi uma voz que me chamou” é ritmada em acompanhamento, no seu refrão, que é o título da canção, por sapateados que seguem a afinação da frase cantada. A embolada do pandeiro não pára em nenhum momento, sendo esse o principal instrumento da canção.
Há músicas do Mestre Ferrugem que lembram o xote, ritmo voltado a linha do forró. A pegada do pandeiro é mais acelerada, usa-se o triângulo, instrumento mais difundido no forró e coco sertanejo, como o coco de Arcoverde, por exemplo. Congas são usadas, em forte referência às raízes africanas. A flauta doce é introduzida com evidência, em forma de solo e ditando os outros instrumentos. Essa referência condiz à música título do álbum: “Mestre quando canta, discípulo tem que respeitar”.
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11 Todos os depoimentos de Wilson Bispo dos Santos neste texto foram dados a este pesquisador, em vinte e oito de maio de 2008, na Agencia Sambada Comunicação e Cultura, Varadouro, Olinda.
De todos os cocos pesquisados nesse trabalho, o coco do Mestre Ferrugem é o que mais se aproxima dos “paradigmas” contemporâneos de introdução rítmica. Ou seja, a música feita por Ferrugem é dotada de instrumentos incomuns ao coco. Vale ressaltar que isso é perceptível quando o artista executa seu trabalho nos palcos, em apresentações comerciais. Ferrugem tem uma história carregada de superação, desafios, mas sempre com muita música presente. Ele teve outros ofícios, como marcenaria e carpintaria, mas sua alma é feita de música e foi feita para o coco. Seu coco se faz de forma que o povo mostra seu sentimento em respostas no refrão que conduz. Mas o seu grande estilo é o desafio, o repente feito na hora. Esse é o coco que nem sempre é mostrado nos palcos. Além dos seus Mestres, aqueles que conduziram, de forma direta ou indireta, seu aprendizado, está na trajetória de Ferrugem a forte influência do seu avô, João Francisco da Luz, que cantava o coco quando ele, Ferrugem, ainda era pequeno.
Como é natural nos mais antigos coquistas, para Ferrugem a tradição foi passada pela família. O pertencimento e a preservação se solidificam e se modernizam, uma vez que o seu coco é aberto para uma nova ritmia (introdução de novos instrumentos) e sua loa é tradicional e pulsante. Ferrugem é um coquista versátil, aberto a novas formas de fazer música e, antes de tudo, educado, sensível e carismático. O pesquisador Aloísio Vilela já havia registrado uma afirmativa sobre novas tendências na musicalidade do coco, que, de certa forma, encaixou perfeitamente no estudo do coco do Mestre Ferrugem. Registrou o pesquisador em sua obra O coco de Alagoas, Série Estudos Alagoanos, caderno V, Maceió-AL, 1961, divulgação do Departamento Estadual de Cultura:
A evolução do coco é um assunto interessantíssimo em virtude das inúmeras fases por que ele tem passado. As diversas modalidades em que vamos encontrá-los nas formas típicas dos cantadores, são uma prova eloqüente da riqueza e da originalidade desta feição da poesia popular de Alagoas. (Vilela, 1961, pág 25).
08/10/2008
O coco do Mestre Galo Preto
Fotos e texto por Luiz Bernardo Barreto
Pesquisa Orientada pela Prof. Aline Grego Lins
(esse texto é parte da pesquisa de Especialização em Jornalismo Cultural feita por esse pesquisador)
Dentre os vários coquista que abordei nessa pesquisa, Tomas de Aquino Leão, 73 anos, o Mestre Galo Preto, foi um dos que mais contribuíram para o desenvolvimento desse trabalho. Sua sabedoria sobre os diferentes tipos de coco, sua história e origem, seu desenvolvimento e relação com outras manifestações culturais, me ensinaram bastante. Pode-se dizer, que antes de ser uma entrevista, o seu depoimento foi uma verdadeira conversa que me orientou e direcionou na pesquisa.
Nascido em uma família rural de cantadores, lembra logo no início da entrevista: “Embolada e coco é uma coisa só. Muda só porque embolada é uma coisa que foi feita para ser cantada nas ruas como meio de sobrevivência, e o coco é mais uma coisa de salão, de reunião de família. Acontecia quando tinha um motivo de festa, como um casamento, um aniversário etc” 10. O pesquisador Jimmy Vasconcelos de Azevêdo, em seu artigo O pandeiro e o folheto: A embolada enquanto manifestação oral e escrita, publicado no livro Cocos, alegria e devoção, de Maria Ignez Novaes Ayala e Marcos Ayala, EDURFN, Natal, 2000, disserta sobre a embolada diferenciando suas características entre a embolada de folheto (forma escrita) e a cantada (forma oral), apontando diferenças, características, historicidade e espaço social, da seguinte forma:
Contundo, ao estilizar a embolada, sistema literário próprio e distinto, transformando-a em forma de composição poética, o folheto acaba por operar uma “redução” que tem muitas implicações. Uma das principais talvez seja a mudança de código: do oral para o escrito, o que por sua vez resulta numa série de modificações e adaptações. Além do mais, perde-se o contexto da praça pública, da feira, e junto com ele toda a sua espontaneidade, liberdade e familiaridade características do momento em que “se tira o verso” rodeado por um público que, embora heterogêneo, não deixa de comungar daquele universo e das situações que o compõem. O caráter desbocado e corrosivo do riso perde em muito o seu poder quando é estilizado no registro escrito, pois, seja consciente, seja inconsciente, acaba havendo uma certa censura por parte do poeta do cordel. Não é reproduzido no folheto nem o palavrão nem as imagens escatológicas “imorais” tão peculiares à embolada. E até mesmo nos folhetos em que se vislumbra o desafio entre cantadores, o tom deixa de ser escrachado e desrespeitoso, completamente livre e desbocado. Parece se aproximar muito mais dos folhetos em que se reproduzem simulações de desafios da cantoria (Azevêdo, 2000, p. 86).
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10 Todos os depoimentos de Tomas de Aquino Leão neste texto foram dados a este pesquisador, em vinte e um de maio de 2008, na Biblioteca Pública de Olinda, no bairro do Carmo, Olinda.
O mestre Galo Preto tem como forte característica a embolada. Forma poética e inteligente de se fazer a letra na hora. Essa é a grande “marca” de Tomás de Aquino Leão. Como afirmou o Mestre Galo Preto e registrou o pesquisador Azevêdo, a embolada tem forte influência das ruas onde é mais cantada e apresentada, até mesmo por meio de sobrevivência. Na entrevista que fiz com Tomas de Aquino, procurei abordar não só o seu conhecimento relacionado à manifestação do coco, mas também sua opinião.
Nas décadas de 50 e 60, Galo Preto ficou conhecido como “Galo de Ouro”. Sua primeira atividade comercial é que o fez ser “descoberto” e apreciado. Tomás de Aquino Leão, fazia repentes enquanto vendia batatas na feira. Ou vendia batatas enquanto fazia repentes? Quem decidiu que o vendedor era sim um grande artista popular, e não um vendedor foi o Rádio, que logo o revelou como um repentista de renome, que mais tarde dividiria o palco com Jackson do Pandeiro, que já foi seu sanfoneiro, Cauby Peixoto, Arlindo dos oito baixos, Luiz Gonzaga e muitos outros.
Galo Preto frisa que, mais recentemente, o coco tomou características de espetáculo, de show, e até de profissão. Ele ainda analisa e compara a forma de se fazer coco nos tempos atuais, e como era feito mais antigamente. “Segundo minha mãe e meus avós, o coco era cantado e foi originado nas senzalas. Os escravos, presos nas senzalas, não tinham condições de participar de festa nenhuma, então eles, num momento de descontração, de alegria, ou até para vencer o tempo, faziam o coco”. Galo Preto explica, falando sobre a origem da manifestação, que na roda feita por homens e mulheres não havia instrumentos. Esse papel, de instrumentalizar a música, era feito pelos pés e mãos. Essa é uma característica muito forte no coco sertanejo e agrestino. É o coco de carretilha (agreste), como diz o Mestre.
Vale lembrar, como já foi registrado nesse trabalho, que o coco, mesmo com elementos indígenas, é de forte influência negra, provinda de países como Angola. Essa é uma característica bastante encontrada no coco de umbigada, presente no litoral do Estado.
O cantador e Mestre Galo Preto explica que esse é o primeiro coco, mas isso não quer dizer, segundo ele, que o coco do litoral seja proveniente do interior do Estado. “O acompanhamento do primeiro coco é a batida do pé e a palma de mão. Depois entram o ganzá e pandeiro. O verdadeiro coco é ganzá e pandeiro (...) Mas isso não quer dizer que o coco do litoral veio do interior, pois os escravos que aqui desceram já faziam o coco(...) o coco foi criado em cada região à sua maneira”.
A evolução e introdução da zabumba, segundo o Mestre, é algo do coco praieiro. Daí formou-se a base instrumental do coco da praia, que é a zabumba, o pandeiro e o ganzá. De fato, podemos perceber que o coco do interior do Estado apenas usa o pandeiro, o ganzá, e às vezes o triângulo. A sonoridade da zabumba é feita na batida dos pés e mãos, sendo essa uma forma de improvisar. Devemos lembrar também que, o coco Raízes de Arcoverde, do sertão pernambucano, usa o bombo, não a zabumba.
Galo Preto é um defensor da improvisação. O Mestre afirma que “o cantador de coco tem que ser um criador, tem que saber improvisar”. “O coco, pelo que conheço, é uma disputa de talento e conhecimento no salão. O verdadeiro coquista é aquele que cria, que faz o coco e tem a improvisação do coco”. O mestre ainda cita um coco de sua autoria que fala sobre os instrumentos da música, e da referência que dá o nome à própria manifestação, o coco.
Assim é o coco:
Bate o pandeiro, balança o ganzá
Deixa a zabumba zoar e vamos até de madrugada (refrão)
Aricuri, catolé, coco dendê
Não é coco pra vender e nem pra fazer cocada
Meu camarada, todo coqueiro tem palha
Quem não sabe se atrapalha que isso é coco de embolada (solo)
Percebesse que a rima, a amarração, é bem construída. As palavras que rimam estão bem posicionadas nos versos:
... ganzá / zoar
... dendê / vender
... cocada / camarada
... palha / atrapalha
... embolada
Uma característica existente em todos os cocos, independente da região, do estilo da dança e até mesmo da instrumentalização, é a “amarração”, que é a rima do coco. Segundo o Mestre Galo Preto, independente de qual seja o coco, todos eles tem que ter a amarração, pois é essa que dita o compasso da música. Ainda questionando Galo Preto sobre os instrumentos que compõe a musicalidade do coco, pergunto sobre a introdução de novos elementos na sonoridade, como o cavaquinho e a flauta doce, encontrados no recente trabalho do também coquista de Olinda, Mestre Ferrugem (cd: Mestre quando Canta, Discípulo tem que Respeitar). Galo Preto é bastante enfático: “Totalmente errado. Está tirando a característica do coco. O coco autêntico é pandeiro e ganzá, agora a turma, pra enfeitar e dá mais harmonia, ta modificando o coco. Isso não deveria existir”, critica.
Insistindo em explicações sobre as diferentes formas do coco, ele introduziu a conversa no coco do sertão. Daí explicou o surgimento de uma das músicas mais conhecidas do coco, o Mineiro Pau. “Se arrancava o feijão, feijão de arranque... Não tinha a técnica que tem hoje, máquina pra desembrulhar o feijão, então o feijão era desembrulhado na base do cacete... Então era uma ‘tunha’ de homens, se colocava o feijão no terreiro para secar, e depois que ele estava seco, juntava todo o pessoal com o cacete na mão e começavam a bater no feijão, para soltar o caroço da ‘bage’. Daí vem a expressão: Mineiro Pau, Mineiro Ô”. Mas o coco não acabava ai. Galo Preto explica que quando colhia todo aquele feijão, se fazia o coco da comemoração da safra, onde reuniam todos e se sambava o coco das 19h da noite às 07h da manhã. No artigo se Samuel Campelo, publicado na obra de Mário Souto Maior e Waldemar Valente, Antologia Pernambucana de Folclore, Fundação Joaquim Nabuco, editora Massangana, Recife, 1988, o pesquisador ressalva que o mineiro pau é uma corruptela de maneiro pau (p. 277).
Ainda falando sobre os diferentes tipos de cocos, ele cita sobre o coco brejeiro (alagoano, segundo ele), e lembra o coquista Jacinto Silva. Dentre a citação, ele lembra os coquistas praieiros Fome, Luiz Boquinha, Antônio Roxinho, Zé Aruá, Sebastião de Goiana (já falecidos), pra ele bastante influentes. Adentrando mais sobre o Fome, ele cita um coco bastante interessante, com forte característica de disputa. “O Fome fez esse coco, que era uma maneira de amedrontar o adversário e o avisar que não ia ser fácil”:
(primeira parte)
O cantor que atravessar Vai provar do meu veneno (refrão – bis 2x)
Essa minha drogaria, só eu sei como ela é
Tu não duvida mané, que isso não é brincadeira
E não é besteira, o veneno é um perigo (solo)
Tu não duvida, sujeito
Se tu beber tu morre ai mesmo, porque doutor nenhum dá jeito
Percebe-se que a métrica (o compasso) do refrão tem mais elementos do que a métrica de um coco comum, como o de quadra, por exemplo. A primeira frase (do solo) rima com a metade da segunda frase. A terceira frase não procura nem determina rima. Já a quarta frase é formada por três terços e ainda rima com a quinta frase do verso.
Ou seja, o elemento a mais no refrão é construído no que se sola dentro de uma própria frase (a terceira), e se acrescenta uma métrica na quarta frase. Dessa forma, o tempo de espaço deixado vazio no que se sola, é preenchido na quarta frase.
Assim é cantada:
1º Essa minha drogaria, só eu sei como ela é
2º Tu não duvida mané, que isso não é brincadeira,
3º E não é besteira (solo)
4º o veneno é um perigo, Tu não duvida sujeito
Se tu beber tu morre ai mesmo
5º porque doutor nenhum dá jeito
É como se o coquista “solasse” dentro do próprio solo. Isso é encontrado na frase “E não é besteira”.
Continuando a falar sobre coco de desafio, lembrou Luiz Boquinha em uma loa de forte cunho de disputa. “O cara vem pensando que é o cobrão e vem ganhando pra todo mundo (...) ai Luiz Boquinha fez assim”.
A música assim é escrita:
Cantor, cantor
Caísse no meu “mundé” (refrão bis 2x)
Tais preso, tais amarrado
Algemado, acorrentado (solo)
Só sai quando eu quiser
Essas antigas loas eram escutadas nos antigos lugares que se cantava e dançava o coco. O coco era cantado e dançado, além das comunidades mais pobres e quilombolas, em casas cedidas por pessoas de classe financeira mais elevada, e praias próximas às comunidades dos grupos de coco. Nas praias também se cultivavam as cirandas. Daí, sua proximidade com o coco.
Conversando com Galo Preto, percebi uma relação da ciranda com o coco em suas palavras, quando disse: “Botaram esse nome de coco, porque os primeiros cantadores de coco eram justamente as pessoas que colhiam o coco (fruto), o tirador de coco (...) então na batida da foice no coco, para descascar, veio o ritmo chamado coco de praia. Os jangadeiros, por exemplo: A jangada tem um balanço que originou a ciranda. Se você olhar direitinho, a dança da ciranda é a dança do remo da jangada. Toda ciranda tem ligação com a praia, com a zona da mata (...) Goiana, Olinda, Igarassu, Jaboatão... Nesses lugares todos havia roda de coco, mas cantado em época, como o São João”. A praia é um lugar comum dessas manifestações populares. Sobre a ciranda a pesquisadora Maria Ignez Novaes Ayala, em Cocos, alegria e devoção, EDURFN, Natal, 2000, Os cocos: Uma manifestação cultural em três momentos do século XX, apontou:
Há também uma preferência pela ciranda em várias localidades visitadas. São raros os grupos que só dançam cocos, sem alterná-los com a ciranda, dança muito popular na Paraíba e no Nordeste. Segundo alguns depoimentos, os cocos aparecem depois da meia noite. Antes, só ciranda. Estar oculta em outra dança, leva-me a pensar que em alguma época, a brincadeira do coco pode ter sido reprimida. Abrigados em outra dança, os cocos estariam driblando a repressão (ou, mais recentemente, a discriminação), recurso semelhante ao utilizado pelos rituais afro-brasileiros, que se desenvolviam sob a fachada do catolicismo. (Ayala, 2000, p. 37)
Nesse mesmo questionamento, Mestre Galo Preto lembra o coco do Toré, o mesmo que aqui (no litoral) chamamos de ‘valsar’ (originado pelo Toré), segundo o Mestre: “O coco dos caboclos é uma ‘tuia’ de gente, se aproximando e se afastando uns dos outro, e rodando num só sentido... Enquanto o coco de praia e o brejero, cada um entra na roda e faz sua estripulia, faz seu jeito de dançar, sai, outro entra na roda... Na Bahia se dança de um jeito, em Pernambuco, Alagoas e Paraíba de outro jeito... Mas com certeza os índios foram uns dos primeiros a dançar o coco. Na Bahia chama-se samba de roda, já não é coco. Em Alagoas é pagode alagoano, aqui em Pernambuco é mais conhecido como coco de embolada. Há diferenças tanto na maneira de dançar, como de cantar”. O coco do toré aqui em Pernambuco é representado pelo grupo fetxha.
Assim como Luiz Boquinha e Fome, coquistas mais antigos, Galo Preto apresenta características de coco de embolada, o que puxa a inovação, a criação momentânea do verso, da rima, ou seja, como ele próprio fala, da amarração. Comenta Abelardo Duarte em Folclore Negro das Alagoas: “Caracterizam-se as emboladas pelo seu ritmo ligeiro (em compasso binário), sendo que divergem fundamentalmente das “emboladas” sertanejas porque não há dialogismo nelas. É, pois, uma diferença de base, estrutural. Isto não deve ser esquecido” (pág 58, 1975, Maceió-AL). O pesquisador Jimmy Vasconcelos de Azevêdo, em seu artigo O pandeiro e o folheto: A embolada enquanto manifestação oral e escrita, publicado no livro de Maria Ignez Novaes Ayala e Marcos Ayala, Cocos, alegria e devoção, EDURFN, Natal, 2000, disserta sobre a forma estrutural da embolada e seu procedimento utilizado no canto da seguinte forma:
Com muita freqüência são utilizadas as quadras, as sextilhas e as décimas; formas também chamadas de 4 linhas, 6 linhas e carreirões. Esses três gêneros parecem ser o mais apreciados, embora sejam muito usados também as sétimas. É interessante notar, entretanto, que parece não haver obrigatoriedade de manutenção, de um mesmo gênero numa embolada, isto é, nada impede que se comece a cantar a sextilha e logo após se passe a cantar a sétima, oitavas ou mesmo décimas. O metro é sempre a redondilha, variando entre a maior e a menor. O procedimento utilizado no canto é, via de regra, o seguinte: um dos emboladores canta a parte solista, enquanto o outro, ao final desta, diz o refrão. Mas isso não é sempre. Existem emboladas em que os dois se revezam na parte solista, cantando ambos o refrão em coro (geralmente quando o refrão é uma quadra, ou forma mais longa). Há os “cocos malcriados”, como chamam os próprios emboladores, em que ambos cantam, depreciando-se mutuamente. Tais emboladas são, na maioria das vezes, quadras; mas podem, no decorrer da performance evoluir para décimas, mais usadas por alguns que por outros, isso talvez porque, devido à sua grande duração, esse gênero force bastante a voz”. (Azevêdo, 2000, p. 84)
Tomas de Aquino Leão, o Galo Preto, que tem a embolada como principal característica, é uma pessoa simples, de boa conversa, educada e bastante receptiva. De fato, como ele defende, o improviso é a maior característica do embolador. Assim como Mestre Ferrugem, Galo Preto vem de uma “escola” de batalha, ou seja, foi criado fazendo coco, boa parte das vezes, em forma de disputa. Seu coco é litorâneo, coco solto, seu improviso é ligeiro, sua loa é bem feita.
Em 2008, Galo Preto completará 65 anos de coco, de cultura viva e presente. Ele é defensor de uma cultura popular que objetiva preservar as manifestações religiosas e rítmicas, a cultura do coco. Seu repertório é composto por repentes que falam sobre a vida, histórias, o agora. Versos feitos na hora. Sua loa é inteligente e rápida. Seu trabalho é uma importante ferramenta de mantimento da cultura popular.
Pesquisa Orientada pela Prof. Aline Grego Lins
(esse texto é parte da pesquisa de Especialização em Jornalismo Cultural feita por esse pesquisador)
Dentre os vários coquista que abordei nessa pesquisa, Tomas de Aquino Leão, 73 anos, o Mestre Galo Preto, foi um dos que mais contribuíram para o desenvolvimento desse trabalho. Sua sabedoria sobre os diferentes tipos de coco, sua história e origem, seu desenvolvimento e relação com outras manifestações culturais, me ensinaram bastante. Pode-se dizer, que antes de ser uma entrevista, o seu depoimento foi uma verdadeira conversa que me orientou e direcionou na pesquisa.
Nascido em uma família rural de cantadores, lembra logo no início da entrevista: “Embolada e coco é uma coisa só. Muda só porque embolada é uma coisa que foi feita para ser cantada nas ruas como meio de sobrevivência, e o coco é mais uma coisa de salão, de reunião de família. Acontecia quando tinha um motivo de festa, como um casamento, um aniversário etc” 10. O pesquisador Jimmy Vasconcelos de Azevêdo, em seu artigo O pandeiro e o folheto: A embolada enquanto manifestação oral e escrita, publicado no livro Cocos, alegria e devoção, de Maria Ignez Novaes Ayala e Marcos Ayala, EDURFN, Natal, 2000, disserta sobre a embolada diferenciando suas características entre a embolada de folheto (forma escrita) e a cantada (forma oral), apontando diferenças, características, historicidade e espaço social, da seguinte forma:
Contundo, ao estilizar a embolada, sistema literário próprio e distinto, transformando-a em forma de composição poética, o folheto acaba por operar uma “redução” que tem muitas implicações. Uma das principais talvez seja a mudança de código: do oral para o escrito, o que por sua vez resulta numa série de modificações e adaptações. Além do mais, perde-se o contexto da praça pública, da feira, e junto com ele toda a sua espontaneidade, liberdade e familiaridade características do momento em que “se tira o verso” rodeado por um público que, embora heterogêneo, não deixa de comungar daquele universo e das situações que o compõem. O caráter desbocado e corrosivo do riso perde em muito o seu poder quando é estilizado no registro escrito, pois, seja consciente, seja inconsciente, acaba havendo uma certa censura por parte do poeta do cordel. Não é reproduzido no folheto nem o palavrão nem as imagens escatológicas “imorais” tão peculiares à embolada. E até mesmo nos folhetos em que se vislumbra o desafio entre cantadores, o tom deixa de ser escrachado e desrespeitoso, completamente livre e desbocado. Parece se aproximar muito mais dos folhetos em que se reproduzem simulações de desafios da cantoria (Azevêdo, 2000, p. 86).
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10 Todos os depoimentos de Tomas de Aquino Leão neste texto foram dados a este pesquisador, em vinte e um de maio de 2008, na Biblioteca Pública de Olinda, no bairro do Carmo, Olinda.
O mestre Galo Preto tem como forte característica a embolada. Forma poética e inteligente de se fazer a letra na hora. Essa é a grande “marca” de Tomás de Aquino Leão. Como afirmou o Mestre Galo Preto e registrou o pesquisador Azevêdo, a embolada tem forte influência das ruas onde é mais cantada e apresentada, até mesmo por meio de sobrevivência. Na entrevista que fiz com Tomas de Aquino, procurei abordar não só o seu conhecimento relacionado à manifestação do coco, mas também sua opinião.
Nas décadas de 50 e 60, Galo Preto ficou conhecido como “Galo de Ouro”. Sua primeira atividade comercial é que o fez ser “descoberto” e apreciado. Tomás de Aquino Leão, fazia repentes enquanto vendia batatas na feira. Ou vendia batatas enquanto fazia repentes? Quem decidiu que o vendedor era sim um grande artista popular, e não um vendedor foi o Rádio, que logo o revelou como um repentista de renome, que mais tarde dividiria o palco com Jackson do Pandeiro, que já foi seu sanfoneiro, Cauby Peixoto, Arlindo dos oito baixos, Luiz Gonzaga e muitos outros.
Galo Preto frisa que, mais recentemente, o coco tomou características de espetáculo, de show, e até de profissão. Ele ainda analisa e compara a forma de se fazer coco nos tempos atuais, e como era feito mais antigamente. “Segundo minha mãe e meus avós, o coco era cantado e foi originado nas senzalas. Os escravos, presos nas senzalas, não tinham condições de participar de festa nenhuma, então eles, num momento de descontração, de alegria, ou até para vencer o tempo, faziam o coco”. Galo Preto explica, falando sobre a origem da manifestação, que na roda feita por homens e mulheres não havia instrumentos. Esse papel, de instrumentalizar a música, era feito pelos pés e mãos. Essa é uma característica muito forte no coco sertanejo e agrestino. É o coco de carretilha (agreste), como diz o Mestre.
Vale lembrar, como já foi registrado nesse trabalho, que o coco, mesmo com elementos indígenas, é de forte influência negra, provinda de países como Angola. Essa é uma característica bastante encontrada no coco de umbigada, presente no litoral do Estado.
O cantador e Mestre Galo Preto explica que esse é o primeiro coco, mas isso não quer dizer, segundo ele, que o coco do litoral seja proveniente do interior do Estado. “O acompanhamento do primeiro coco é a batida do pé e a palma de mão. Depois entram o ganzá e pandeiro. O verdadeiro coco é ganzá e pandeiro (...) Mas isso não quer dizer que o coco do litoral veio do interior, pois os escravos que aqui desceram já faziam o coco(...) o coco foi criado em cada região à sua maneira”.
A evolução e introdução da zabumba, segundo o Mestre, é algo do coco praieiro. Daí formou-se a base instrumental do coco da praia, que é a zabumba, o pandeiro e o ganzá. De fato, podemos perceber que o coco do interior do Estado apenas usa o pandeiro, o ganzá, e às vezes o triângulo. A sonoridade da zabumba é feita na batida dos pés e mãos, sendo essa uma forma de improvisar. Devemos lembrar também que, o coco Raízes de Arcoverde, do sertão pernambucano, usa o bombo, não a zabumba.
Galo Preto é um defensor da improvisação. O Mestre afirma que “o cantador de coco tem que ser um criador, tem que saber improvisar”. “O coco, pelo que conheço, é uma disputa de talento e conhecimento no salão. O verdadeiro coquista é aquele que cria, que faz o coco e tem a improvisação do coco”. O mestre ainda cita um coco de sua autoria que fala sobre os instrumentos da música, e da referência que dá o nome à própria manifestação, o coco.
Assim é o coco:
Bate o pandeiro, balança o ganzá
Deixa a zabumba zoar e vamos até de madrugada (refrão)
Aricuri, catolé, coco dendê
Não é coco pra vender e nem pra fazer cocada
Meu camarada, todo coqueiro tem palha
Quem não sabe se atrapalha que isso é coco de embolada (solo)
Percebesse que a rima, a amarração, é bem construída. As palavras que rimam estão bem posicionadas nos versos:
... ganzá / zoar
... dendê / vender
... cocada / camarada
... palha / atrapalha
... embolada
Uma característica existente em todos os cocos, independente da região, do estilo da dança e até mesmo da instrumentalização, é a “amarração”, que é a rima do coco. Segundo o Mestre Galo Preto, independente de qual seja o coco, todos eles tem que ter a amarração, pois é essa que dita o compasso da música. Ainda questionando Galo Preto sobre os instrumentos que compõe a musicalidade do coco, pergunto sobre a introdução de novos elementos na sonoridade, como o cavaquinho e a flauta doce, encontrados no recente trabalho do também coquista de Olinda, Mestre Ferrugem (cd: Mestre quando Canta, Discípulo tem que Respeitar). Galo Preto é bastante enfático: “Totalmente errado. Está tirando a característica do coco. O coco autêntico é pandeiro e ganzá, agora a turma, pra enfeitar e dá mais harmonia, ta modificando o coco. Isso não deveria existir”, critica.
Insistindo em explicações sobre as diferentes formas do coco, ele introduziu a conversa no coco do sertão. Daí explicou o surgimento de uma das músicas mais conhecidas do coco, o Mineiro Pau. “Se arrancava o feijão, feijão de arranque... Não tinha a técnica que tem hoje, máquina pra desembrulhar o feijão, então o feijão era desembrulhado na base do cacete... Então era uma ‘tunha’ de homens, se colocava o feijão no terreiro para secar, e depois que ele estava seco, juntava todo o pessoal com o cacete na mão e começavam a bater no feijão, para soltar o caroço da ‘bage’. Daí vem a expressão: Mineiro Pau, Mineiro Ô”. Mas o coco não acabava ai. Galo Preto explica que quando colhia todo aquele feijão, se fazia o coco da comemoração da safra, onde reuniam todos e se sambava o coco das 19h da noite às 07h da manhã. No artigo se Samuel Campelo, publicado na obra de Mário Souto Maior e Waldemar Valente, Antologia Pernambucana de Folclore, Fundação Joaquim Nabuco, editora Massangana, Recife, 1988, o pesquisador ressalva que o mineiro pau é uma corruptela de maneiro pau (p. 277).
Ainda falando sobre os diferentes tipos de cocos, ele cita sobre o coco brejeiro (alagoano, segundo ele), e lembra o coquista Jacinto Silva. Dentre a citação, ele lembra os coquistas praieiros Fome, Luiz Boquinha, Antônio Roxinho, Zé Aruá, Sebastião de Goiana (já falecidos), pra ele bastante influentes. Adentrando mais sobre o Fome, ele cita um coco bastante interessante, com forte característica de disputa. “O Fome fez esse coco, que era uma maneira de amedrontar o adversário e o avisar que não ia ser fácil”:
(primeira parte)
O cantor que atravessar Vai provar do meu veneno (refrão – bis 2x)
Essa minha drogaria, só eu sei como ela é
Tu não duvida mané, que isso não é brincadeira
E não é besteira, o veneno é um perigo (solo)
Tu não duvida, sujeito
Se tu beber tu morre ai mesmo, porque doutor nenhum dá jeito
Percebe-se que a métrica (o compasso) do refrão tem mais elementos do que a métrica de um coco comum, como o de quadra, por exemplo. A primeira frase (do solo) rima com a metade da segunda frase. A terceira frase não procura nem determina rima. Já a quarta frase é formada por três terços e ainda rima com a quinta frase do verso.
Ou seja, o elemento a mais no refrão é construído no que se sola dentro de uma própria frase (a terceira), e se acrescenta uma métrica na quarta frase. Dessa forma, o tempo de espaço deixado vazio no que se sola, é preenchido na quarta frase.
Assim é cantada:
1º Essa minha drogaria, só eu sei como ela é
2º Tu não duvida mané, que isso não é brincadeira,
3º E não é besteira (solo)
4º o veneno é um perigo, Tu não duvida sujeito
Se tu beber tu morre ai mesmo
5º porque doutor nenhum dá jeito
É como se o coquista “solasse” dentro do próprio solo. Isso é encontrado na frase “E não é besteira”.
Continuando a falar sobre coco de desafio, lembrou Luiz Boquinha em uma loa de forte cunho de disputa. “O cara vem pensando que é o cobrão e vem ganhando pra todo mundo (...) ai Luiz Boquinha fez assim”.
A música assim é escrita:
Cantor, cantor
Caísse no meu “mundé” (refrão bis 2x)
Tais preso, tais amarrado
Algemado, acorrentado (solo)
Só sai quando eu quiser
Essas antigas loas eram escutadas nos antigos lugares que se cantava e dançava o coco. O coco era cantado e dançado, além das comunidades mais pobres e quilombolas, em casas cedidas por pessoas de classe financeira mais elevada, e praias próximas às comunidades dos grupos de coco. Nas praias também se cultivavam as cirandas. Daí, sua proximidade com o coco.
Conversando com Galo Preto, percebi uma relação da ciranda com o coco em suas palavras, quando disse: “Botaram esse nome de coco, porque os primeiros cantadores de coco eram justamente as pessoas que colhiam o coco (fruto), o tirador de coco (...) então na batida da foice no coco, para descascar, veio o ritmo chamado coco de praia. Os jangadeiros, por exemplo: A jangada tem um balanço que originou a ciranda. Se você olhar direitinho, a dança da ciranda é a dança do remo da jangada. Toda ciranda tem ligação com a praia, com a zona da mata (...) Goiana, Olinda, Igarassu, Jaboatão... Nesses lugares todos havia roda de coco, mas cantado em época, como o São João”. A praia é um lugar comum dessas manifestações populares. Sobre a ciranda a pesquisadora Maria Ignez Novaes Ayala, em Cocos, alegria e devoção, EDURFN, Natal, 2000, Os cocos: Uma manifestação cultural em três momentos do século XX, apontou:
Há também uma preferência pela ciranda em várias localidades visitadas. São raros os grupos que só dançam cocos, sem alterná-los com a ciranda, dança muito popular na Paraíba e no Nordeste. Segundo alguns depoimentos, os cocos aparecem depois da meia noite. Antes, só ciranda. Estar oculta em outra dança, leva-me a pensar que em alguma época, a brincadeira do coco pode ter sido reprimida. Abrigados em outra dança, os cocos estariam driblando a repressão (ou, mais recentemente, a discriminação), recurso semelhante ao utilizado pelos rituais afro-brasileiros, que se desenvolviam sob a fachada do catolicismo. (Ayala, 2000, p. 37)
Nesse mesmo questionamento, Mestre Galo Preto lembra o coco do Toré, o mesmo que aqui (no litoral) chamamos de ‘valsar’ (originado pelo Toré), segundo o Mestre: “O coco dos caboclos é uma ‘tuia’ de gente, se aproximando e se afastando uns dos outro, e rodando num só sentido... Enquanto o coco de praia e o brejero, cada um entra na roda e faz sua estripulia, faz seu jeito de dançar, sai, outro entra na roda... Na Bahia se dança de um jeito, em Pernambuco, Alagoas e Paraíba de outro jeito... Mas com certeza os índios foram uns dos primeiros a dançar o coco. Na Bahia chama-se samba de roda, já não é coco. Em Alagoas é pagode alagoano, aqui em Pernambuco é mais conhecido como coco de embolada. Há diferenças tanto na maneira de dançar, como de cantar”. O coco do toré aqui em Pernambuco é representado pelo grupo fetxha.
Assim como Luiz Boquinha e Fome, coquistas mais antigos, Galo Preto apresenta características de coco de embolada, o que puxa a inovação, a criação momentânea do verso, da rima, ou seja, como ele próprio fala, da amarração. Comenta Abelardo Duarte em Folclore Negro das Alagoas: “Caracterizam-se as emboladas pelo seu ritmo ligeiro (em compasso binário), sendo que divergem fundamentalmente das “emboladas” sertanejas porque não há dialogismo nelas. É, pois, uma diferença de base, estrutural. Isto não deve ser esquecido” (pág 58, 1975, Maceió-AL). O pesquisador Jimmy Vasconcelos de Azevêdo, em seu artigo O pandeiro e o folheto: A embolada enquanto manifestação oral e escrita, publicado no livro de Maria Ignez Novaes Ayala e Marcos Ayala, Cocos, alegria e devoção, EDURFN, Natal, 2000, disserta sobre a forma estrutural da embolada e seu procedimento utilizado no canto da seguinte forma:
Com muita freqüência são utilizadas as quadras, as sextilhas e as décimas; formas também chamadas de 4 linhas, 6 linhas e carreirões. Esses três gêneros parecem ser o mais apreciados, embora sejam muito usados também as sétimas. É interessante notar, entretanto, que parece não haver obrigatoriedade de manutenção, de um mesmo gênero numa embolada, isto é, nada impede que se comece a cantar a sextilha e logo após se passe a cantar a sétima, oitavas ou mesmo décimas. O metro é sempre a redondilha, variando entre a maior e a menor. O procedimento utilizado no canto é, via de regra, o seguinte: um dos emboladores canta a parte solista, enquanto o outro, ao final desta, diz o refrão. Mas isso não é sempre. Existem emboladas em que os dois se revezam na parte solista, cantando ambos o refrão em coro (geralmente quando o refrão é uma quadra, ou forma mais longa). Há os “cocos malcriados”, como chamam os próprios emboladores, em que ambos cantam, depreciando-se mutuamente. Tais emboladas são, na maioria das vezes, quadras; mas podem, no decorrer da performance evoluir para décimas, mais usadas por alguns que por outros, isso talvez porque, devido à sua grande duração, esse gênero force bastante a voz”. (Azevêdo, 2000, p. 84)
Tomas de Aquino Leão, o Galo Preto, que tem a embolada como principal característica, é uma pessoa simples, de boa conversa, educada e bastante receptiva. De fato, como ele defende, o improviso é a maior característica do embolador. Assim como Mestre Ferrugem, Galo Preto vem de uma “escola” de batalha, ou seja, foi criado fazendo coco, boa parte das vezes, em forma de disputa. Seu coco é litorâneo, coco solto, seu improviso é ligeiro, sua loa é bem feita.
Em 2008, Galo Preto completará 65 anos de coco, de cultura viva e presente. Ele é defensor de uma cultura popular que objetiva preservar as manifestações religiosas e rítmicas, a cultura do coco. Seu repertório é composto por repentes que falam sobre a vida, histórias, o agora. Versos feitos na hora. Sua loa é inteligente e rápida. Seu trabalho é uma importante ferramenta de mantimento da cultura popular.
07/10/2008
O coco de Ana Lúcia do Amaro Branco
Fotos e texto por Luiz Bernardo Barreto
Pesquisa Orientada pela Prof. Aline Grego Lins
(esse texto é parte da pesquisa de Especialização em Jornalismo Cultural feita por esse pesquisador)
Coco de praia é sinônimo de muitos Mestres em Olinda. A cidade é um celeiro de coco
solto. Entre os “pólos” mais conhecidos dessa manifestação estão o coco de Selma, o de Beth, o do Pneu, e o coco de Ana Lucia Nunes da Silva, entre outros. Coquista de 62 anos, moradora do Amaro Branco, em Olinda, Ana Lucia Nunes da Silva tem uma importante parcela na história do coco olindense. Começou “cantar” o coco, segundo ela, com três anos de idade, quando respondia o coco dos mestres que via cantar. Participa do coco do Pneu, no Amaro Branco, mas realiza periodicamente a manifestação do coco em frente à sua casa, pouco atrás do farol de Olinda. Na sua vida coco é tradição, passada para suas filhas, também coquistas.
Além do coco, Ana Lucia desenvolve trabalho no Pastoril, divulgando e exibindo essa manifestação religiosa. Religião é algo muito presente na cultura de Ana Lucia. Como ela mesmo fala, “Eu canto coco em louvor a São João Baptista, e não admito que no coco de roda tenha palavrão. Palavrão é uma coisa do pastoril profano, algo do Velho Faceta, e tem que ser respeitado (...) Todo mundo sabe que o coco de roda veio do cativeiro, tem muita raiz de candomblé, e tem fundamento e espírito que nos ajuda muito (...) Eu acho que todos os cocos vêm de raiz de espírito de candomblé”. 9
Para ser Mestre, Ana teve Mestre. Pessoas, como a Mestre de coco do Amaro Branco, Dona Jovelina, que ensinou e despertou o gosto dessa dança e canção em Ana. “Com a Mestra aprendi a cantar e tocar o ganzá (...) não cantava só, eu respondia os cocos que ela fazia”, diz. Dona Jovelina era uma sertaneja que escreveu letras, segundo Ana, que hoje é cantada com outra versão, por outros coquistas. Ana lembra do dia em que foram (ela mais nova, acompanhada de Dona Jovelina) fazer o coco na casa de uma “senhora”, que ela não lembra o nome. Essa senhora mandou retirar o bolo que estava na mesa, ordenando que apenas depois da festa, quando estivesse no final dos festejos, eles poderiam comê-lo. Daí Ana conta que a Mestra Jovelina escutou e não gostou daquela atitude, a “obrigando” a responder um coco que acabara de ‘tirar’ (fazer na hora). O coco assim foi feito:
Ô boa noite, dona da casa
Não quero o seu bolo não (refrão / solo – D. Jovelina)
Nós viemos festejar o glorioso São João (resposta – Ana e amigas)
___________________
9 Todos os depoimentos de Ana Lucia Nunes da Silva, neste texto foram dados a este pesquisador, em dois de abril de 2008, em sua casa, no bairro do Amaro Branco, em Olinda
Tradição e respeito são elementos que, relacionados ao coco, compõe a “filosofia” de Ana Lucia. Sobre a manifestação do coco no Amaro Branco, em décadas mais anteriores, Ana explica que não existia o funk, o brega, o pagode etc, e o coco tinha maior aceitação: “Coco era uma brincadeira que todas as pessoas brincavam, mulher casada, moça, criança... Era uma brincadeira religiosa e respeitada. No tempo que eu comecei a cantar coco, as mulheres dançavam com as mulheres, e os homens com os homens”.
Ana conta que existiam pessoas que não eram coquistas, mas cediam as casas para os coquistas cantarem. Ela destaca a tradição no coco praieiro, o Acorda Povo: “Quando a gente tava no melhor do coco, por volta das duas da manhã, os donos da casa, cedida ao coco, queriam acabar com a festa. Eu dizia pra mim mesmo que quando crescesse e casasse, ia fazer meu próprio coco (...) Mas quando chegava na entre véspera de São João, a gente fazia o Acorda Povo, que ia até de manhã. O coco começava mais cedo, quando dava meia noite saia o Acorda Povo, com um andor, e ia à Rio Doce. Chegando lá se colocava o andor na beira do rio, tomava banho e fazia os pedidos, soltava os fogos, levávamos comida e bebidas, e lá continuava o coco. Essa festa só terminava de manhã. Todo coquista que é coquista sabe o que é o Acorda Povo, o que não é pra todo mundo”.
Além de Dona Jovelina, sua Mestra direta que morreu aos 86 anos, Ana lembra de Benedito Grande, Aruá, Gilberto ‘Doido’, Euclídes, Israel, pessoas que faziam o coco praieiro e também já faleceram. Em sua maioria, o coco praieiro é produzido por pescadores, que escrevem sobre a pesca, sobre a comunidade em que vivem, o cotidiano e até mesmo a sociedade, de forma simples, direta e reflexiva. Ana explica que coco de roda é história, principalmente contada por eles. A instrumentalização requer a zabumba, além do pandeiro e do ganzá, com uma “pegada” bastante acelerada. Ana Lucia cita que em Itapissuma usa-se um caixa na sonoridade do coco, o que, segundo ela, fica bonito. Mas também critica a introdução de muitos elementos novos na composição sonora do coco: “O coco verdadeiro não precisa botar muito instrumento. Muito instrumento é maracatu. Na raiz do coco da gente, jamais eu substituiria o ganzá pra botar um agbê”.
Sobre os antigos costumes e lugares onde eram apresentados o coco, Ana explica que tudo era muito difícil, “Sem dinheiro, sem nada, o pessoal chamava agente... Pau Amarelo, Tururu, Praia do Ó, Enseadinha, Conceição... Não existia ônibus, só cavalo e carroça. E agente com tanto amor ao coco ia a pé. O pé inchava. Agente cantava naquelas casinhas todas cobertas de palha, casas de pescador, e fazíamos o coco até amanhecer. Esses meses todos de maio a Santana (julho) ninguém parava. Quando acabava agente fazia os vinhos de jenipapo, coava bem coado, colocava os vinhos de fusão enterrados, já que não existia cerveja nem refrigerante. Isso pro sangue era uma beleza! Além disso, existia no coco de roda a batida de maracujá e a pitu (...) coco era de pobre, pobre mesmo, que não tinha nada”.
Hoje percebemos, observando as rodas de coco pesquisadas, a presença de pessoas muito jovens da classe média. É interessante como, de fato, pessoas com diferentes realidades se misturam, se cumprimentam, e tiram umas as outras pra dançar. Isso é muito presente no coco do Amaro Branco. Dentre vários coquista de renome que essa comunidade fez “nascer”, tem uma em especial lembrada por Ana Lucia, que é Dona Damiana. A história de Dona Damiana é intrigante e bastante curiosa. Envolve uma canção que, em meados dos anos 90, fez surgir na mídia uma maior atenção ao coco, provocada justamente por causa da música, a “rolinha”, de Selma do Coco. Conseqüentemente, o coco ficou mais conhecido, mais divulgado, mas nem sempre apreciado da maneira original.
Segundo Ana Lucia, o hit de bastante sucesso cantado por Selma do Coco, na verdade é de autoria de Dona Damiana. Ana fala: “Esse coco não tinha palavrão. Ele é de uma mulher que, quando eu tinha oito anos, ela tinha 78, e se chamava Dona Damiana, que nós chamávamos de vovó. O coco assim fazia”:
(refrão)
Ô corre, corre, corre
Pega, pega minha roupa
Agoa, agoa, agoa
Pega, pega minha roupa
Lembrando as influências, Ana cita as antigas rodas de coco feita em Olinda. Falou do coco da Colônia dos Pescadores (Z-4), no Carmo, e da Vila dos Pescadores, no Amaro Branco. Ana também disse que seu coco tem bastante influência, na instrumentalização, do coco feito em Goiana, cidade natal do seu marido, e falou sobre o processo de escrever as letras das músicas. “A família do meu marido veio de Goiana pra cá, e eles tinham o sambado, o sapateado, igual ao nosso. Era o mesmo cântico, as mesmas histórias bonitas, sem pornografias (...) As letras eu faço de repente. Elas vêm de repente. Ai, naquele momento que chega, eu tenho que escrever, que gravar. A letra é um dom que Deus dá. O coco de rebate sai na hora. Já o de embolada você jamais faz na hora, porque ele tem muita letra”. (na foto, Zeca do Rolete e Ana Lúcia, no coco do Pneu)
A coquista Ana Lucia participou, juntamente com os coquistas Zeca do Rolete, Aurinha, Selma do coco, Galo Preto, Arnaldo e Ferrugem, de um projeto da Secretaria de Saúde de Olinda, que objetivava fazer um disco de coco para conscientizar a população a não ter preconceito com os portadores da Aids. A sua contribuição para o disco foi a seguinte:
Sem preconceito, menina, aids não pega assim
Ela só pega em gente, que não faz prevenção (solo)
Use a camisinha sim
Tenha precaução
Não tenha preconceito Com o seu irmão (refrão)
Ela não pega no beijo, nem no aperto de mão
Ela só pega em gente, que não tem precaução (solo)
(refrão)
Ela é a sua segurança, ela é a sua proteção
Na hora do ‘vamos ver’, não tire o prazer, meu irmão (solo)
(refrão)
O coco do Pneu, onde Ana Lucia canta com freqüência, acontece todo o último sábado de cada mês. Nesse coco podem-se encontrar outros coquistas, como Arnaldo do coco, Edmílson, Pombo Roxo, Dona Glorinha, Cotia (Washigton) vocalista do grupo A Cocada, também do Amaro Branco, com linha musical mais contemporânea, e muitos outros. O espaço é bastante democrático. Todos podem pegar o microfone e cantar sua loa, desde que seja bonita e obedeça à métrica do coco. Isso é uma característica em todos os espaços de coco. Acontece o mesmo nos instrumentos. O ganzá, a zabumba, o pandeiro, e outros instrumentos introduzidos como agbê, tambor, triangulo, conga é de quem tiver disposição. É chamado de coco do Pneu por ficar no beco de Lú do Pneu, que também toca o coco. É a “Turma do Pneu”. A turma é de pescadores, pequenos comerciantes, trabalhadores, mas também é freqüentado por jovens de classe média, universitários etc. (na foto Mestre Pombo Roxo no coco do Pneu)
O coco tem essa característica de convite, de reunião, de celebração. Acontece o mesmo no coco que Ana Lucia faz em frente a sua casa, por traz do farol de Olinda. Trajadas de vestidos estampados de flores, ela, suas filhas, amigas e crianças cantam o coco até amanhecer. Os mesmos que cantam no Pneu também “tiram” seu coco na casa de Ana. O coco de Ana é praieiro, tradicional, solto. Tem origem afro-indígena, com “sincronismo” do candomblé e catolicismo. Sobre o seu gênero de coco, o solto, dissertou o pesquisador Aloísio Vilela, em sua obra O coco de Alagoas, Série Estudos Alagoanos, caderno V, Maceió-AL, 1961, divulgação do Departamento Estadual de Cultura:
A primeira manifestação da nossa interessante dança popular foi o coco solto. Chamava-se assim porque não tinha outros versos intercalados durante o canto, isto é, a amarração, que os cantadores introduziram depois. A amarração é o desenvolvimento do assunto e que serve de intermédio entre o estribilho dos cocos. O coco solto, em vista não ter amarração, era somente o refrão, tirado pelo cantador e respondido pelo povo (Vilela, 1961, pág 26).
O trabalho é uma mescla da cultura brasileira, com ênfase na cultura popular pernambucana. Muitos beberam da fonte do coco, principalmente aqueles que fizeram nascer o movimento pop de Pernambuco, o manguebeat, nos anos 80 e 90. Além do coco, outros ritmos contribuíram para essa construção cultural, como o maracatu, o afoxé, a embolada e outros mais. Sonoridade essencialmente percussiva, que denota música africana, com um jeito caboclo. Para Ana Lúcia, todos os cocos têm raízes de espírito de candomblé.(na foto Beco do Pneu)
Autenticidade é o que não falta ao coco do Amaro Branco, Amarowhite para aqueles com mais intimidade na comunidade. O bairro é reduto de pescadores, gente humilde, trabalhadora que gosta mesmo é de dançar e cantar o coco, seja no Pneu, ou atrás do farol de Olinda. Assim é o Amaro Branco, parte alta de Olinda, onde dá para se ver o mar e muitos outros bairros da cidade. Assim é o seu coco, feito por pessoas de todas as idades, que lotam as ruas e becos para ver seus Mestres cantar as loas até o amanhecer. A festa só acaba quando o sol nasce, mas para o coco começar, basta a zabumba, o pandeiro e o ganzá, e muita alegria, coisa que não falta para Ana Lúcia e todos aqueles que puxam o coco no Amaro Branco.
Pesquisa Orientada pela Prof. Aline Grego Lins
(esse texto é parte da pesquisa de Especialização em Jornalismo Cultural feita por esse pesquisador)
Coco de praia é sinônimo de muitos Mestres em Olinda. A cidade é um celeiro de coco
solto. Entre os “pólos” mais conhecidos dessa manifestação estão o coco de Selma, o de Beth, o do Pneu, e o coco de Ana Lucia Nunes da Silva, entre outros. Coquista de 62 anos, moradora do Amaro Branco, em Olinda, Ana Lucia Nunes da Silva tem uma importante parcela na história do coco olindense. Começou “cantar” o coco, segundo ela, com três anos de idade, quando respondia o coco dos mestres que via cantar. Participa do coco do Pneu, no Amaro Branco, mas realiza periodicamente a manifestação do coco em frente à sua casa, pouco atrás do farol de Olinda. Na sua vida coco é tradição, passada para suas filhas, também coquistas.
Além do coco, Ana Lucia desenvolve trabalho no Pastoril, divulgando e exibindo essa manifestação religiosa. Religião é algo muito presente na cultura de Ana Lucia. Como ela mesmo fala, “Eu canto coco em louvor a São João Baptista, e não admito que no coco de roda tenha palavrão. Palavrão é uma coisa do pastoril profano, algo do Velho Faceta, e tem que ser respeitado (...) Todo mundo sabe que o coco de roda veio do cativeiro, tem muita raiz de candomblé, e tem fundamento e espírito que nos ajuda muito (...) Eu acho que todos os cocos vêm de raiz de espírito de candomblé”. 9
Para ser Mestre, Ana teve Mestre. Pessoas, como a Mestre de coco do Amaro Branco, Dona Jovelina, que ensinou e despertou o gosto dessa dança e canção em Ana. “Com a Mestra aprendi a cantar e tocar o ganzá (...) não cantava só, eu respondia os cocos que ela fazia”, diz. Dona Jovelina era uma sertaneja que escreveu letras, segundo Ana, que hoje é cantada com outra versão, por outros coquistas. Ana lembra do dia em que foram (ela mais nova, acompanhada de Dona Jovelina) fazer o coco na casa de uma “senhora”, que ela não lembra o nome. Essa senhora mandou retirar o bolo que estava na mesa, ordenando que apenas depois da festa, quando estivesse no final dos festejos, eles poderiam comê-lo. Daí Ana conta que a Mestra Jovelina escutou e não gostou daquela atitude, a “obrigando” a responder um coco que acabara de ‘tirar’ (fazer na hora). O coco assim foi feito:
Ô boa noite, dona da casa
Não quero o seu bolo não (refrão / solo – D. Jovelina)
Nós viemos festejar o glorioso São João (resposta – Ana e amigas)
___________________
9 Todos os depoimentos de Ana Lucia Nunes da Silva, neste texto foram dados a este pesquisador, em dois de abril de 2008, em sua casa, no bairro do Amaro Branco, em Olinda
Tradição e respeito são elementos que, relacionados ao coco, compõe a “filosofia” de Ana Lucia. Sobre a manifestação do coco no Amaro Branco, em décadas mais anteriores, Ana explica que não existia o funk, o brega, o pagode etc, e o coco tinha maior aceitação: “Coco era uma brincadeira que todas as pessoas brincavam, mulher casada, moça, criança... Era uma brincadeira religiosa e respeitada. No tempo que eu comecei a cantar coco, as mulheres dançavam com as mulheres, e os homens com os homens”.
Ana conta que existiam pessoas que não eram coquistas, mas cediam as casas para os coquistas cantarem. Ela destaca a tradição no coco praieiro, o Acorda Povo: “Quando a gente tava no melhor do coco, por volta das duas da manhã, os donos da casa, cedida ao coco, queriam acabar com a festa. Eu dizia pra mim mesmo que quando crescesse e casasse, ia fazer meu próprio coco (...) Mas quando chegava na entre véspera de São João, a gente fazia o Acorda Povo, que ia até de manhã. O coco começava mais cedo, quando dava meia noite saia o Acorda Povo, com um andor, e ia à Rio Doce. Chegando lá se colocava o andor na beira do rio, tomava banho e fazia os pedidos, soltava os fogos, levávamos comida e bebidas, e lá continuava o coco. Essa festa só terminava de manhã. Todo coquista que é coquista sabe o que é o Acorda Povo, o que não é pra todo mundo”.
Além de Dona Jovelina, sua Mestra direta que morreu aos 86 anos, Ana lembra de Benedito Grande, Aruá, Gilberto ‘Doido’, Euclídes, Israel, pessoas que faziam o coco praieiro e também já faleceram. Em sua maioria, o coco praieiro é produzido por pescadores, que escrevem sobre a pesca, sobre a comunidade em que vivem, o cotidiano e até mesmo a sociedade, de forma simples, direta e reflexiva. Ana explica que coco de roda é história, principalmente contada por eles. A instrumentalização requer a zabumba, além do pandeiro e do ganzá, com uma “pegada” bastante acelerada. Ana Lucia cita que em Itapissuma usa-se um caixa na sonoridade do coco, o que, segundo ela, fica bonito. Mas também critica a introdução de muitos elementos novos na composição sonora do coco: “O coco verdadeiro não precisa botar muito instrumento. Muito instrumento é maracatu. Na raiz do coco da gente, jamais eu substituiria o ganzá pra botar um agbê”.
Sobre os antigos costumes e lugares onde eram apresentados o coco, Ana explica que tudo era muito difícil, “Sem dinheiro, sem nada, o pessoal chamava agente... Pau Amarelo, Tururu, Praia do Ó, Enseadinha, Conceição... Não existia ônibus, só cavalo e carroça. E agente com tanto amor ao coco ia a pé. O pé inchava. Agente cantava naquelas casinhas todas cobertas de palha, casas de pescador, e fazíamos o coco até amanhecer. Esses meses todos de maio a Santana (julho) ninguém parava. Quando acabava agente fazia os vinhos de jenipapo, coava bem coado, colocava os vinhos de fusão enterrados, já que não existia cerveja nem refrigerante. Isso pro sangue era uma beleza! Além disso, existia no coco de roda a batida de maracujá e a pitu (...) coco era de pobre, pobre mesmo, que não tinha nada”.
Hoje percebemos, observando as rodas de coco pesquisadas, a presença de pessoas muito jovens da classe média. É interessante como, de fato, pessoas com diferentes realidades se misturam, se cumprimentam, e tiram umas as outras pra dançar. Isso é muito presente no coco do Amaro Branco. Dentre vários coquista de renome que essa comunidade fez “nascer”, tem uma em especial lembrada por Ana Lucia, que é Dona Damiana. A história de Dona Damiana é intrigante e bastante curiosa. Envolve uma canção que, em meados dos anos 90, fez surgir na mídia uma maior atenção ao coco, provocada justamente por causa da música, a “rolinha”, de Selma do Coco. Conseqüentemente, o coco ficou mais conhecido, mais divulgado, mas nem sempre apreciado da maneira original.
Segundo Ana Lucia, o hit de bastante sucesso cantado por Selma do Coco, na verdade é de autoria de Dona Damiana. Ana fala: “Esse coco não tinha palavrão. Ele é de uma mulher que, quando eu tinha oito anos, ela tinha 78, e se chamava Dona Damiana, que nós chamávamos de vovó. O coco assim fazia”:
(refrão)
Ô corre, corre, corre
Pega, pega minha roupa
Agoa, agoa, agoa
Pega, pega minha roupa
Lembrando as influências, Ana cita as antigas rodas de coco feita em Olinda. Falou do coco da Colônia dos Pescadores (Z-4), no Carmo, e da Vila dos Pescadores, no Amaro Branco. Ana também disse que seu coco tem bastante influência, na instrumentalização, do coco feito em Goiana, cidade natal do seu marido, e falou sobre o processo de escrever as letras das músicas. “A família do meu marido veio de Goiana pra cá, e eles tinham o sambado, o sapateado, igual ao nosso. Era o mesmo cântico, as mesmas histórias bonitas, sem pornografias (...) As letras eu faço de repente. Elas vêm de repente. Ai, naquele momento que chega, eu tenho que escrever, que gravar. A letra é um dom que Deus dá. O coco de rebate sai na hora. Já o de embolada você jamais faz na hora, porque ele tem muita letra”. (na foto, Zeca do Rolete e Ana Lúcia, no coco do Pneu)
A coquista Ana Lucia participou, juntamente com os coquistas Zeca do Rolete, Aurinha, Selma do coco, Galo Preto, Arnaldo e Ferrugem, de um projeto da Secretaria de Saúde de Olinda, que objetivava fazer um disco de coco para conscientizar a população a não ter preconceito com os portadores da Aids. A sua contribuição para o disco foi a seguinte:
Sem preconceito, menina, aids não pega assim
Ela só pega em gente, que não faz prevenção (solo)
Use a camisinha sim
Tenha precaução
Não tenha preconceito Com o seu irmão (refrão)
Ela não pega no beijo, nem no aperto de mão
Ela só pega em gente, que não tem precaução (solo)
(refrão)
Ela é a sua segurança, ela é a sua proteção
Na hora do ‘vamos ver’, não tire o prazer, meu irmão (solo)
(refrão)
O coco do Pneu, onde Ana Lucia canta com freqüência, acontece todo o último sábado de cada mês. Nesse coco podem-se encontrar outros coquistas, como Arnaldo do coco, Edmílson, Pombo Roxo, Dona Glorinha, Cotia (Washigton) vocalista do grupo A Cocada, também do Amaro Branco, com linha musical mais contemporânea, e muitos outros. O espaço é bastante democrático. Todos podem pegar o microfone e cantar sua loa, desde que seja bonita e obedeça à métrica do coco. Isso é uma característica em todos os espaços de coco. Acontece o mesmo nos instrumentos. O ganzá, a zabumba, o pandeiro, e outros instrumentos introduzidos como agbê, tambor, triangulo, conga é de quem tiver disposição. É chamado de coco do Pneu por ficar no beco de Lú do Pneu, que também toca o coco. É a “Turma do Pneu”. A turma é de pescadores, pequenos comerciantes, trabalhadores, mas também é freqüentado por jovens de classe média, universitários etc. (na foto Mestre Pombo Roxo no coco do Pneu)
O coco tem essa característica de convite, de reunião, de celebração. Acontece o mesmo no coco que Ana Lucia faz em frente a sua casa, por traz do farol de Olinda. Trajadas de vestidos estampados de flores, ela, suas filhas, amigas e crianças cantam o coco até amanhecer. Os mesmos que cantam no Pneu também “tiram” seu coco na casa de Ana. O coco de Ana é praieiro, tradicional, solto. Tem origem afro-indígena, com “sincronismo” do candomblé e catolicismo. Sobre o seu gênero de coco, o solto, dissertou o pesquisador Aloísio Vilela, em sua obra O coco de Alagoas, Série Estudos Alagoanos, caderno V, Maceió-AL, 1961, divulgação do Departamento Estadual de Cultura:
A primeira manifestação da nossa interessante dança popular foi o coco solto. Chamava-se assim porque não tinha outros versos intercalados durante o canto, isto é, a amarração, que os cantadores introduziram depois. A amarração é o desenvolvimento do assunto e que serve de intermédio entre o estribilho dos cocos. O coco solto, em vista não ter amarração, era somente o refrão, tirado pelo cantador e respondido pelo povo (Vilela, 1961, pág 26).
O trabalho é uma mescla da cultura brasileira, com ênfase na cultura popular pernambucana. Muitos beberam da fonte do coco, principalmente aqueles que fizeram nascer o movimento pop de Pernambuco, o manguebeat, nos anos 80 e 90. Além do coco, outros ritmos contribuíram para essa construção cultural, como o maracatu, o afoxé, a embolada e outros mais. Sonoridade essencialmente percussiva, que denota música africana, com um jeito caboclo. Para Ana Lúcia, todos os cocos têm raízes de espírito de candomblé.(na foto Beco do Pneu)
Autenticidade é o que não falta ao coco do Amaro Branco, Amarowhite para aqueles com mais intimidade na comunidade. O bairro é reduto de pescadores, gente humilde, trabalhadora que gosta mesmo é de dançar e cantar o coco, seja no Pneu, ou atrás do farol de Olinda. Assim é o Amaro Branco, parte alta de Olinda, onde dá para se ver o mar e muitos outros bairros da cidade. Assim é o seu coco, feito por pessoas de todas as idades, que lotam as ruas e becos para ver seus Mestres cantar as loas até o amanhecer. A festa só acaba quando o sol nasce, mas para o coco começar, basta a zabumba, o pandeiro e o ganzá, e muita alegria, coisa que não falta para Ana Lúcia e todos aqueles que puxam o coco no Amaro Branco.
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