25/11/2010

A crítica e consideração de Émile Durkheim sobre Rudolf Jhering

Por Luiz Bernardo Barreto


Para o sociólogo Émile Durkheim, a moral se relaciona com todos os fatos sociais dos quais deriva e formam seu conteúdo. Em sua concepção, a filosofia do direito nunca se limitou aos filósofos na Alemanha, pois os juristas já há bastante tempo vêm tratando do direito natural, e desde o início atribuíram a ele uma forma mais positiva: O direito ideal e o real; O direito ideal seria a conseqüência do destino da humanidade, com capacidade de superar os limites normais. O direito real seria a estância das necessidades da vida prática, sendo o poder direto e imediato. Para o autor, a interação dos dois não foi muito produtiva.

Em seu estudo sobre o trâmite da jurisprudência, Durkheim cita o escritor e jurista Rudolf von Jhering (autor de A finalidade do Direito, 1884), que trata de um novo conceito da filosofia do direito. Tal estudo se encontra no segundo capítulo de sua obra: Ética e sociologia da moral. No trabalho citado, o jurista trata à ética, segundo Durkheim, em seu conceito “pontual” de finalidade. A finalidade citada por Durkheim nasce de uma interação de outros campos de estudo, pesquisa e ciência na formação de uma ética doravante, e não pontual: “Nosso conceito faz dela um ramo da ciência social e irmã gêmea de todas as disciplinas (...) jurisprudência, estatística, economia política e política (...) eu próprio estou pronto a usar outras para os objetivos que tenho em mente” (Émile Durkheim). Ele também trata a ciência da linguagem como ferramenta útil na análise das ciências morais.

Durkheim critica Jhering por suas idéias serem superficiais, sem profundidade e precisão, numa pregação de um direito mais individual que coletivo. Essa prática do direito natural reduziria a realidade a um conjunto de conceitos, se estruturando numa idéia abstrata, ou seja, sem maior entendimento para o grosso da população. Dessa forma, Durkheim vem registrar que Rudolf von Jhering reconhece apenas o método subjetivo na psicologia.

Segundo Émile Durkheim, as primeiras idéias morais do povo são formuladas pela relação da mitologia e etimologia, formando essas o que o autor chama de paleontologia da ética. Essa concepção traz à tona a idéia de que as pessoas, com a abstração do pensar, não mudam sua forma, e sim sua capacidade de reflexão. Tal forma de pensar presumi o agir, que esse, por sua vez, se pauta em regras. O autor vem dizer que para explicar uma regra do direito, é preciso mostrar que ela é útil para alguma coisa, que se ajusta ao propósito a que deveria atender. “O direito é um fenômeno sociológico. Para entendê-lo é preciso buscar sua finalidade” (Émile Durkheim).

Nesse “patamar” de pensamento, o autor vem dizer que “ocorrem nas sociedades, assim como nos indivíduos, mutações que têm causas, mas não têm fins (...) a noção de que todas as nossas ações visam objetivos conscientes ou não é altamente discutível”. A primeira afirmativa ressalva que os fenômenos sociais derivam de causas práticas, com possibilidade de variações úteis, mesmo sem previsão e sem causa determinante, sem finalidade precisa. A segunda afirmação visualiza, de forma geral, que todo ato de comportamento humano, de natureza individual ou social, objetiva a adaptação do indivíduo, ou da sociedade, ao ambiente.

Para a adaptação do indivíduo, as condições são fundamentais. Em Durkheim é necessário dar ao termo “condições” um significado mais abrangente. Nesse sentido, ele vem dizer que condições não são apenas as coisas indispensáveis à sobrevivência, e sim tudo aquilo cuja falta faria a existência, que parece sem valor. Ele exemplifica sua afirmativa com a necessidade da honra, na qual não é uma condição necessária à vida, porém abstraída pela sociedade como um valor moral. Contextualizando, ele vem dizer que o direito depende simultaneamente de causas objetivas e de causas subjetivas, não tendo esse que ser “julgado” num nível de veracidade ou falsidade, mas sim num patamar de adequação ou inadequação ao objetivo que é sua razão de ser. Entende-se por Durkheim que o direito não é essencial, e sim fundamental.

“Quando a sociedade padece de males, ela se protege e os combate por meio do direito” (Durkheim). Então, para se entender o caráter jurídico, é preciso considerar sua relação com os fins que eles realizam, e não as coisas em si, porque os males podem ter diversas facetas, sendo para uns benefícios. Entendendo a relação com os fins, entenderíamos a melhor aplicação do caráter jurídico pela via do direito. “O direito é a mão pesada da sociedade sobre o indivíduo, e onde ela deixa de se fazer sentir, não existem direitos” (Durkheim). Para ele não existe apenas um único direito, sendo a sociedade que assegura todos os direitos que se possui, tendo o poder de limitá-lo e restringi-lo.

Émile Durkheim também chama atenção a um fenômeno muito presente na contemporaneidade, que é o crescimento da interferência do direito na esfera do interesse público. Isso moldura, cada vez mais, os códigos civis, de uma forma ou de outra. Tais códigos se expandem na medida em que as sociedades crescem e se tornam mais enredadas, emaranhadas, com condições de existência mais diversificada e complexa. Para dar exemplo claro, o autor cita serviços que antes eram luxo, e hoje são fundamentais (já não mais apenas essenciais), como o militarismo e a educação elementar.

A liberdade antes desfrutada pelo indivíduo agora se torna obrigação social, na qual o progresso distinguiu cada vez mais o mundo social e físico que o cerca, desenvolvendo um sentido mais forte de si. “A ação do Estado se expande cada vez mais e não é possível atribuir a ela um limite definitivo” (Durkheim). Essa é a concepção na qual Durkheim vem criticar e discordar na idéia de direito natural, emitida por Rudolf von Jhering, na qual a única função é proteger os indivíduos uns dos outros. Émile Durkheim vem assegurar que “os teóricos do direito natural esquecem de que a compreensão não pode ser reduzida a uma massa de cidadãos, nem o interesse social reduzido à soma dos interesses individuais”.

Dessa forma, ele vem dizer que não é um abismo a característica centralizadora na qual os indivíduos usam para se isolar. Muito pelo contrário, eles se amontoam uns sobre os outros, sempre se tocando no que se mexem. Porém, Durkheim concorda com Jhering quando afirma ser a coação a finalidade do direito. Mas ele ressalva que existe coação de diferentes tipos, sendo: 1. A que o indivíduo exerce sobre o outro; 2. As que se exercem em difusão pela conjuntura social sob os usos e costumes, e da opinião pública; 3. As estabelecidas e concentradas na mão do Estado (assegurando a eficácia do direito).

Durkheim conclui que onde não há coação, o direito é inexistente, e onde a coação não é bem estabelecida, não há consistência no direito. “É por isso que o direito internacional continua num estado de incoerência e confusão do qual não sairá tão cedo” (Durkheim). Coação se fundamenta na força, e, para o autor, é da força que surge o direito. No principio a força era essencial e o direito secundário. Hoje o princípio e outro. Ele se inverte, tendo a relação entre força e direito mudado. A força é auxiliar, servindo ao direito.

O autor dita o direito como algo que não é sagrado em si, sendo sim um meio de se chegar a um fim, apenas tendo valor se garantir a vida da sociedade. Contrariando essa regra, “será natural que a força intervenha e reassuma temporariamente o lugar que já ocupou”. Na concordância com Jhering, o direito é “todas as condições de existência da sociedade asseguradas por meio de uma coação externa imposta pela força colocada à disposição do Estado” (Rudolf Jhering, Der Zweck im Recht, Leipzig, 1884, vol. 1, p. 511). Jhering busca o motivo que levam as pessoas a respeitá-lo. Então, para que a sociedade seja possível, é necessário que nos desprenda de certos fatores, como a liberdade em alguns casos, por exemplo, pois o livre arbítrio assegurado pelo Estado pode ser uma concepção de liberdade não desfrutada e adquirida por determinado indivíduo. Exemplifiquemos: matar em alegação a defesa pessoal. Quem interpreta se foi defesa ou não é o Estado.

O direito se permanece com dois princípios da moral pura, que é o senso de dever e o amor. Sem tais princípios, pertencentes ao domínio dessa moral, o direito não se permaneceria. A moral, assim como o direito, consiste de preceitos que a coação torna obrigatório quando achar necessário. É necessário que haja uma flexibilização e liberdade da moral diante do direito. Mas o direito se diferencia da moral por características externar e diferenças de vem de dentro pra fora, sendo que na obra de Rudolf Jhering não se possa ver a claridade da consistência dessa diferença.

O direito, para Durkheim, é a moral mínima absolutamente necessária para o permanecimento da sociedade. Jhering aborda diferentes graus de moralidade, sendo os costumes e a moral propriamente dita. Aos costumes, ele enfatiza que tem que ser distinguido da moda, pois a essa se atribui razões individuais, inteiramente. Durkheim discorda, uma vez que, para o sociólogo, o motivo da moda é eterno, sendo sua verdadeira causa social, resultando da necessidade manifestada pelas classes superiores, na tentativa de se distinguirem externamente das inferiores. Dessa forma, as camadas inferiores tendem imitar as superiores, e os estilos se difundem pela sociedade, quando a moda é adotada por todos, perde o valor, tendo que se renovar indefinidamente para continuar sua jornada. Particularmente, e me permitindo fugir do contexto que é uma resenha científica, como aqui se intenciona fazer, exponho minha opinião discordando dessa afirmativa de Émile Durkheim, levando em consideração que na contemporaneidade o que se presencia, em alguns casos, é o inverso disso, em que a classe mais baixa, economicamente falando, dita sua própria moda, e, por vezes, constrói um modelo identitário no qual a camada mais superior, numa situação financeira, consome assiduamente. Roupas e músicas da moda (atual) são exemplos claros disso. Obviamente que esse modelo ainda se constrói em ressalvas, não sendo o modelo gerador e dominante.

Voltando ao assunto proposto, para Durkheim a moda é externa à moral (sua origem é a vaidade de classe). Porém, a moda não se dá com os costumes, que são apoios úteis indispensáveis. Dessa forma, pode-se agir contra os costumes sem ofender a moral. Os costumes então, se mostram medidas preventivas com propósito de evitar o mal, não de combatê-lo. O que o costume proíbe não é em si condenável, e sim perigoso. “O valor moral dos costumes é real, mas derivado; e, no caso de conflito com a moral, são os costumes que devem ceder” (Durkheim).

Finalizando seu artigo: Os juristas - Rudolf Jhering, sendo o capítulo II de seu livro: Ética e sociologia da moral, o autor julga a psicologia de Jhering muito simplista, atribuído ao cálculo e aos sentimentos interessados um papel excessivamente importante na formação das idéias morais e ignorando o início da evolução humana. Dessa forma, Rudolf von Jhering atribui uma importância exagerada à forma externa das coisas. Mas esse jurista, segundo Durkheim, “merece crédito por ter descoberto e indicado o caminho pelo qual a moral pode vir a se tornar uma ciência positiva”, sendo seu livro um “esforço para reunir a filosofia do direito e o direito positivo”.

23/11/2010

Resumo | Leitura do Cap. 06 - A Ética do Trabalho, do livro A Corrosão do Caráter, de Richard Sennett

O trabalho que se segue teve seu contexto da pesquisa produzido por Juliana Gomes de Moraes e Tayga Pimentel | As considerações finais é de Luiz Bernardo Barreto.

Tal pesquisa faz parte do trabalho apresentado na cadeira de Sociologia das Organizações | Ciências Sociais | UFRPE


As superficialidades da sociedade moderna são as mais degradadoras do comportamento humano. Um dos motivos para essa superficialidade degradante é a desorganização do tempo, originado pelo trabalho moderno, uma vez que a trajetória da atual economia política é continuamente replanejada. Detesta a rotina e o curto prazo. Tentando descobrir a profundidade do tempo abaixo da superfície, as relações humanas são desprovidas de objetivos duráveis. A ética do trabalho é a arena em que mais se contesta hoje em dia, essa profundidade. Ética de trabalho, como é vista hoje, depende de instituições suficientemente estáveis para a pessoa praticar a experiência da profundidade - experiência esta que é entendida como um adiantamento na vida dos trabalhadores.


Num regime cujas instituições mudam rapidamente, a satisfação pelo trabalho adiado, por exemplo, perde seu valor. A seriedade da velha ética de trabalho como foi vista por estudiosos, impunha pesados fardos ao eu trabalhador. As pessoas tentavam provar seu próprio valor pelo seu trabalho em forma de "ascetismo leigo", como o chamou Max Weber. O adiamento da satisfação podia tornar-se uma prática profundamente autodestrutiva. Mas a alternativa moderna para a longa disciplina de tempo, não é um verdadeiro remédio para essa autonegação. A moderna ética do trabalho concentra-se no trabalho de equipe, pois acima de tudo, o trabalho em equipe enfatiza a adaptabilidade às circunstâncias. Neste sentido, o trabalho de equipe é a ética de trabalho que serve a uma economia política flexível. Apesar de todo o arquejar psicológico da administração moderna sobre o trabalho de equipe, no escritório e na fábrica, é o etos de trabalho que permanece na superfície da experiência. Então, trabalho de equipe é a prática de grupo da superficialidade degradante.

A velha ética do trabalho baseava-se na prática voluntária, auto-imposta, que na simples submissão passiva a horários ou rotinas. No mundo antigo, achava-se que essa disciplina auto-imposta era a única maneira de enfrentar o caos da natureza. Era uma necessidade exigida diariamente, dos agricultores, já que os mesmos dependiam da incerteza da natureza, de seu tempo imprevisível (Cf. Hesíodo, Os trabalhos e os dias). No mundo de Hesíodo, porém, a disciplina auto-imposta no uso do tempo parecia mais necessidade bruta que virtude humana. Com o correr do tempo, a estatura moral do agricultor se elevava. A necessidade de trabalhar duro torna-se então, uma virtude. Virgílio em Geórgicas, quase quinhentos anos depois de Hesíodo, ainda evoca a anarquia da natureza. Segundo ele, a virtude moral da agricultura é que ensina resolução permanente, independente de resultado. Em Geórgicas, transpõem-se a anarquia da natureza para uma visão de anarquia interior, psíquica. A única defesa do indivíduo aqui é organizar bem o seu tempo.

Quando a idéia de autodisciplina tomou forma, continha uma forte dose de estoicismo - não do tipo filosófico, mas uma espécie de estoicismo prático, que ditava a necessidade permanente de combater a anarquia interior, sem esperança de vitória. O estoicismo permanente do camponês não bastaria para o homem histórico. Os termos de disciplina teriam de adaptar-se a um eu em fluxo. Junto a esta corrente, o filósofo renascentista Florentino Pico della Mirandola, em sua Oração sobre a dignidade do homem afirma o homem como seu próprio criador (homo faber), onde sua condição é maleável. Em vez de manter o mundo como o homem o herdou, deve-se moldá-lo de novo. Mas, apesar de o homo faber ir contra o dogma tradicional cristão, Pico della Mirandola não era surdo a essas convicções. Ele acreditava que a conduta cristã exige autodisciplina e imitação de vidas exemplares. O cristão em Pico está certo do destino final, mas também quer fazer-se ao mar. É um dos primeiros filósofos renascentistas a celebrar os riscos psíquicos, sabendo que o mar interior, como os oceanos navegados pelos exploradores renascentistas, é território não mapeado.

Essas meadas éticas contrárias, a autodisciplina e automodelação, vinham juntas no mais famoso ensaio sobre a ética do trabalho, A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber. O autor procurou mostrar mais a combinação que a contradição delas, ao analisar a alvorada do capitalismo moderno. Segundo ele, o que se deve adiar é o desejo de satisfação e realização. Molda-se a história de modo que no fim se tenha conseguido alguma coisa com o trabalho. Então, e só então, nesse tempo futuro, estar-se-á realizado. Quanto ao presente, deve-se ainda agir como o camponês de Virgílio, combatendo a preguiça e as forças do caos interior, com uma distribuição rígida e implacável do tempo. Portanto, neste contexto, julgava Weber a ética de trabalho como uma fraude. O adiamento é interminável, a autonegação no presente inexorável. Para ele as recompensas prometidas jamais chegam. A visão do tempo de trabalho serve a Weber como uma maneira de criticar as crenças modernas sobre o caráter, especificamente a crença no homem como seu próprio criador. Essa autonegação tornou-se então o "ascetismo leigo" da prática capitalista do século dezoito, com sua ênfase mais em poupar que em gastar, sua "rotinização" da atividade do dia-a-dia, seu medo do prazer. O catolicismo, antes do advento do protestantismo, buscara tranqüilizar a maculada humanidade, embora aconselhando a rendição às instituições da Igreja, seus rituais e os poderes de seus sacerdotes. O protestantismo buscou um remédio mais individual para a dúvida do eu. O indivíduo protestante tinha de moldar sua história de modo a somar um todo significativo, digno. O indivíduo torna-se então eticamente responsável por seu próprio tempo vivido particular.

Ao contrário das boas obras católicas, porém, o trabalho árduo não pode conquistar para o protestante nenhum grande favor junto ao Criador, apenas oferece sinais de intenções dignas a um Juiz divino que já decidiu cada caso de antemão. Esse é o terror que se esconde por trás do conceito abstrato de "ascetismo leigo". Na opinião de Weber, a maior disposição de poupar do que de gastar passou do protestante para o capitalista como um ato de autodisciplina e autonegação. Essa mesma passagem deu origem a um novo tipo de caráter. É o homem motivado, decidido a provar seu valor moral pelo trabalho. O homem motivado não se encaixa nas velhas imagens católicas dos vícios da riqueza, como a gula ou a luxúria; é intensamente competitivo, mas não pode gozar do que ganha. A história de sua vida torna-se uma interminável busca de reconhecimento dos outros e de auto-estima. Contudo, mesmo que os outros o elogiassem por seu ascetismo leigo, ele temeria aceitar esse elogio, pois isso significaria aceitar-se a si mesmo. Tudo no presente é tratado como instrumento para um destino final nada no momento importa por si mesmo. Foi isso que se tornou na sociedade secular da teologia do indivíduo.

A ética do trabalho do homem motivado não parece a Max Weber motivo de felicidade humana, nem na verdade de força psicológica. O homem motivado é demasiado oprimido pela importância que tem de atribuir ao trabalho. Disciplina, diz Michel Foucault, é um ato de autopunição, e sem dúvida é o que parece na exposição da ética do trabalho. Assim, o uso disciplinado do tempo não é a virtude simples, direta, que a princípio parece. É Luta implacável, inexorável. No mundo antigo, é enigma para os crentes renascentistas. No homo faber, motivo de autopunição na teologia do indivíduo.

Certamente o enfraquecimento da ética do trabalho seria um ganho para a civilização. Mas como aliviar o peso sobre o eu trabalhador? As formas modernas de trabalho em equipe são em muitos aspectos o oposto da ética do trabalho como concebia Max Weber. Em oposição à ética do indivíduo, o trabalho em equipe enfatiza mais a responsividade mútua que a confirmação pessoal. O tempo das equipes é mais flexível e voltado para tarefas específicas de curto prazo do que para a soma de décadas caracterizadas pela contenção e a espera. O trabalho em equipe, porém, leva ao domínio da superficialidade degradante que assedia o moderno local de trabalho. Na verdade, o trabalho em equipe deixa o reino da tragédia para encenar as relações humanas como uma farsa. Os grupos tendem a manter-se juntos ficando na superfície das coisas. E a superficialidade partilhada mantém as pessoas juntas evitando questões difíceis, divisivas, pessoais. Assim, o trabalho em equipe poderia parecer mais um exemplo, portanto, dos laços do conformismo de grupo.

Na velha cultura de trabalho, o conformista empresarial era uma personagem demasiado previsível e confiável. Nessa cultura flexível da imagem e sua informação, previsibilidade e confiabilidade são traços de caráter menos destacados. O líder aparece agora como um facilitador. Uma solução entre o grupo é "mediar" entre cliente e equipe. É um administrador do processo. Seu trabalho, facilitação e mediação, podem ser separadas do resultado. A palavra "líder" assim, se aplica a ele no sentido tradicional de autoridade, mas sem autoridade real. Tampouco são a facilitação e mediação atos de vontade implacáveis, decididos, como os que formavam o caráter dos pequenos agricultores livres em combate com a natureza. O ascetismo leigo de Weber, como foi visto, realizava a teologia do indivíduo de Lutero num mundo secular. O indivíduo colhido nos labores do ascetismo leigo luta para adquirir poder sobre si mesmo. Mais, o homem motivado busca justificar-se. Nesse sentido, a ética do trabalho assume uma forma diferente, aparentemente em termos mais colaborativos que individuais. As pessoas ainda fazem jogos de poder nas equipes, contudo, a ênfase em aptidões leves de comunicação, facilitação e mediação muda radicalmente um aspecto do poder: desaparece a autoridade. A pessoa com poder não justifica a ordem; o poderoso apenas "facilita", capacita os outros. Esse poder sem autoridade desorienta os empregados. Eles ainda podem sentir-se levados a justificar- se, mas agora não há ninguém mais acima que responda.

O trabalho em equipe adquiriu uma espécie de sanção oficial, na moderna prática administrativa americana. A Comissão de Obtenção de Qualificações Necessárias da Secretaria (SCANS em inglês) produziu seu relatório em 1991. Devia ser um relatório sobre as qualificações que as pessoas precisam numa economia flexível. A imagem que a SCANS faz da equipe é de um grupo de pessoas reunidas mais para executar uma tarefa específica imediata que para permanecer juntas, como numa aldeia. Os autores argumentam que o trabalhador tem de trazer a tarefas de curto prazo a capacidade instantânea de trabalhar bem com um elenco variável de caracteres. Isso significa que as aptidões que as pessoas levam para o trabalho são portáteis: saber ouvir e ajudar aos outros, ao passar de equipe em equipe, à medida que muda o pessoal das equipes. Concluiu-se que as realidades da equipe no local de trabalho flexível são caracterizadas pela enganadora metáfora esportiva para estimular as formas flexíveis de trabalho. Os autores do estudo da SCANS e outros semelhantes são realistas: sabem que a economia hoje enfatiza o desempenho mediato e o curto prazo, os resultados do saldo final. Contudo, os administradores também sabem que uma competição individual acirrada pode destroçar o desempenho de um grupo. Assim, na equipe de trabalho moderna surge uma ficção: os patrões não competem de fato entre si. E mais importante ainda, surge à ficção de que trabalhadores e chefes não são antagonistas; o chefe, em vez disso, administra o processo de grupo. Ele ou ela é "líder", a palavra mais esperta no moderno léxico administrativo; o líder está do nosso lado, em vez de ser nosso governante. O jogo de poder é jogado pela equipe contra equipes de outras empresas.

O conceito de equipe justificava o trabalho flexível como uma forma de desenvolver as aptidões pessoais, a empresa declarava que "todos os membros associados serão treinados em várias funções, e nelas trabalharão. Isso aumenta seu valor para a equipe e para a empresa, além de seus próprios sentimentos de auto-estima (cultura de cooperação por meio de símbolos igualitários) - manipular as aparências e comportamentos. (Cf. Graham, Laurie). O importante neste aspecto é o fato de que os administradores se apegam à panacéia de fazerem o trabalho imediato todos juntos, todos na mesma equipe, para resistir à contestação interna. O chefe evita ser responsável por suas ações: tudo recai nos ombros do jogador. Assim, o poder está presente nas cenas superficiais de trabalho de equipe, mas a autoridade está ausente. As modernas técnicas de administração buscam fugir do aspecto "autoritário" de tais declarações, mas fazendo isso os administradores conseguem escapar também de se responsáveis por seus atos. O repúdio da autoridade e da responsabilidade nas próprias superficialidades do trabalho em equipe flexível estrutura a vida de trabalho diária, e também os momentos de crise, como uma greve ou uma redução. Esse jogo de poder sem autoridade gera um novo tipo de caráter. Em lugar do homem motivado, surge o homem irônico. Uma visão irônica de si mesmo é a conseqüência lógica de viver no tempo flexível, sem padrões de autoridade e responsabilidade. O etos do trabalho de equipe contrapõe o universo moral do camponês determinado e heróico de Virgílio. E as relações de poder contidas na equipe de trabalho, o poder exercido sem reivindicações de autoridade, está muito distante da ética de responsabilidade própria que caracterizava a velha ética do trabalho, com seu ascetismo leigo (rigidez moral) de Weber.

A cultura da nova ordem perturba profundamente a auto-organização. Ela pode separar a experiência flexível da ética pessoal estática. Pode separar o trabalho fácil, superficial, da compreensão e do empenho. Pode tornar o constante correr riscos um exercício de depressão. A mudança irreversível e múltipla, a atividade fragmentada pode ser confortável para os senhores do novo regime, mas podem desorientar os servos do regime. E o novo etos cooperativo do trabalho em equipe instala como senhores os "facilitadores" e "administradores de processo", que fogem ao verdadeiro compromisso com seus servos. Assim, clássica ética do trabalho de adiar a satisfação e provar-se pelo trabalho árduo dificilmente pode exigir nossa afeição. Mas tampouco o pode o trabalho em equipe, com suas ficções e fingimentos de comunidade.


CONSIDERAÇÕES FINAIS |


Percebemos com a leitura do sexto capítulo, A Ética do Trabalho, do livro A Corrosão do Caráter, de Richard Sennett, que ele aponta duas éticas diferentes. A velha e a nova ética. Na primeira atuava o indivíduo detentor do horário de trabalho, consciente da existência e vinda do “caos”, atribulado ao trabalho como necessidade e virtude. Na nova ética “reina” o indivíduo submisso ao tempo estabelecido de trabalho (rotinização), numa convivência diária e constante do “caos”, e sua necessidade que alimenta a virtude, sendo essa atribulada ao trabalho. A virtude não mais está no reconhecimento duradouro, e sim no instantâneo. O caos não mais virá através na “Anarquia da Natureza”, na conceituação de Virgílio, em Geórgicas, onde essa é transplantada numa visão interior, psíquica, sendo o caos agora eminente, construído e administrado pelo homem.

Nessa concepção do mundo, sendo o homem seu próprio criador, aparece o conceito de homo faber, “cabendo ao homem ser o que preferir e ser o que quiser (...) é ignóbil não dar à luz nada de nós mesmo”, (Florentino Pico della Mirandola em Orações sobre a dignidade do Homem). O homo faber ia contra o dogma tradicional cristão no que pregava o aprendizado e transplantação desse aprendizado. Em contrapartida a essa concepção vinha o pensamento cristão, no que afirmava o modelar do indivíduo, mas se contrariava na idéia de passar essa experiência através desse indivíduo: “Tira as mãos de ti mesmo; tenta construir-te a ti e construirás uma ruína” (Santo Agostinho). “É uma virtude disciplinar o uso de nosso tempo, mas um pecado projetar nossa própria experiência” (Tyndale, bispo renascentista).

A partir desse pensamento, Max Weber traz a alusão do asceticismo leigo, sendo esse contexto de autonegação e autodisciplina. Essa prática visa à autonegação da prática capitalista do século XVIII, com maior ênfase em poupar do que gastar tempo na rotinização das atividades diárias. Isso decorre do medo legítimo do prazer. Essa prática passa do protestante para o capitalista, dando origem a um novo caráter social. O homem agora se motiva a mostrar seu valor social através do trabalho. Ele (o protestante e novo indivíduo capitalista) se mostra mais competitivo e tendo “consciência” que não pode gozar do que ganha. O que faz o homem justificar-se é a motivação. “É o homem motivado, decidido a provar seu valor moral pelo trabalho” (Sennet).

Richard Sennett vem dissertar sobre o trabalho de equipe, numa perspectiva contemporânea, tendo como base de estudo a sociedade norte-americana. O autor vem enfatizar que o trabalho de equipe molda as atitudes mútuas que favorecem o desenvolvimento da autonomia e auto-afirmação, sendo o tempo voltado para tarefas específicas de curto prazo. Nessa linha, Sennett fala sobre a “superficialidade degradante”, sendo essa a posição do falso sentido, onde não há contextualização difícil, divisivas e pessoais, gerando um conformismo de grupo. Isso se relaciona ao indivíduo que não contesta, não expressando sua opinião crítica. Nesse patamar, o líder é o indivíduo que se especializa em administrar os processos, sendo que, não necessariamente, seu trabalho está ligado ao resultado. O líder é o facilitador que domina a arte da flexibilização, sabendo bem escutar e processar o que lhe foi incumbido. Seu sentido de liderança se estrutura no sentido tradicional de autoridade, mas sem autoridade de trazer pra si a problemática do processo.

A ética do trabalho assume uma forma mais colaborativa do que individual. O aspecto do poder se estrutura em aptidões leve de comunicação, leve mediação e facilitação, sendo pautados assim os jogos de poder. A pessoa com poder é facilitadora do processo e capacitadora das ferramentas. O jogo de poder é jogado pela equipe contra equipes de outras empresas. A pesquisa da SCANS (Comissão de Obtenção de Qualificações Necessárias da Secretaria, 1991), citada por Richard Sennett, enfatiza que ouvir e reproduzir o que foi dito, são o grande mote para continuar inserido no sistema de trabalho de equipes, uma vez que ouvindo se discute tudo “mais por regras improvisadas e livres do que por regras escritas num manual de procedimento”.

As aptidões dos funcionários são portáteis, tais como saber ouvir e ajudar a passar de equipe em equipe, no que muda o pessoal das equipes. Com isso, a economia enfatiza o desempenho imediato e o curto prazo, os resultados finais. Já no patronato não há, geralmente, competição entre si, fazendo surgir à ilusão que trabalhadores e chefes não são antagonistas, diferentes. Sennett conclui que o trabalho de equipe é a prática de grupo de superficialidade degradante, concentrado na adaptabilidade às circunstâncias, sendo essa a ética do trabalho que serve a uma economia de política flexível. Essa ética de trabalho depende, em partes, de instituições suficientemente estáveis para a pessoa praticar o adiamento. Torna-se absurdo trabalhar arduamente por muito tempo e para um patrão que só pensa em vender o negócio e subir. A mudança, como agente responsável, desabilita a responsabilidade do administrador, do chefe. Se todos são vítimas, não há autoridade para culpar. A pressão dos colegas com ele mesmo é que faz o trabalho do administrador. Logo, sua função primordial é fazer com que eles se pressionem.

Na conformidade da metáfora do esporte (quando o chefe ou líder se transforma em “treinador”), quando utilizada na construção do relacionamento no trabalho de equipe, o autor pondera que o distanciamento do indivíduo como pessoa, no processo de trabalho, é efetivo para boa construção do processo trabalhista:

“Também se exige distanciamento do bom jogador da equipe, ele deve ter a capacidade de distanciar-se de relacionamentos estabelecidos e julgar como podem ser mudados; deve imaginar a tarefa imediata, em vez de mergulhar em longas histórias de intrigas, traições passadas e ciumeiras” (Sennett).

Em umas das citações de Sennett nesse capitulo de seu livro, o pesquisador aborda o sociólogo Gideon Kunda e sua concepção de “teatro profundo” para descrever o trabalho de equipe. Esse pensamento constrói um entendimento que tal teatro obriga os indivíduos a manipular suas aparências e comportamentos com os outros. Seria uma forma de vestir várias máscaras, tendo cada uma delas uma funcionalidade de comunicação, bom desempenho, se pautando no falso. Em outra citação, Richard Sennett aponta estudo de Robin Leidner, que estudou os roteiros escritos, entregues aos empregados de serviço com propósito de estabelecer a “simpatia” do empregado que cuidar das substâncias dos interesses dos clientes. Sennett vem chamar isso de “janelas de aptidão social”, na qual o sorriso cativante se faz fórmula para uma boa conduta trabalhista e interação comunicacional. Seria o “hipertexto” necessário. A encenação é uma questão de sobrevivência (juntamente com o conflito mútuo) na qual fortalece a posição dos que estão acima.

Na conclusão de seu pensamento sobre o caráter do indivíduo, Sennett vem afirmar que esse caráter se dá na medida em que existe um jogo de poder sem autoridade. O homem motivado de Max Weber dar lugar ao homem irônico da contemporaneidade, na qual o indivíduo veste suas máscaras sem se preocupar em assumir uma determinada posição, em que possa ser responsabilizado totalmente. Essa ironia se concentra num estado que não é levado a sério, pois os termos que ela refere estão dispostos a constantes mudanças, reconhecendo suas fragilidades, seu eu.

Para Richard Sennett, nem a velha nem a nova ética do trabalho oferece uma resposta satisfatória à pergunta de Pico della Mirandola: “Como devo moldar minha vida?”. Organizar as histórias das nossas vidas agora, num processo capitalista que nos marginaliza em termos profissionais, no que diz respeito à experiência, é o problema no qual enfrentamos atualmente.