08/10/2008

O coco do Mestre Ferrugem

Fotos e texto por Luiz Bernardo Barreto
Pesquisa Orientada pela Prof. Aline Grego Lins
(esse texto é parte da pesquisa de Especialização em Jornalismo Cultural feita por esse pesquisador)


Coco litorâneo, olindense, com resposta feminina, inovação na instrumentalização que aborda instrumentos atípicos ao coco, como flauta doce e cavaquinho. A forte característica do coco de Wilson Bispo dos Santos, o Mestre Ferrugem, está marcada pela presença do pandeiro, que, junto com a canção falada, compõe a maior parte da música. Ou seja, a junção da ritmia do pandeiro com a palavra. A resposta do coco é feita por três vozes femininas, uma zabumba, a percussão, a voz e o pandeiro do Mestre Ferrugem. Também existe o triângulo nessa composição sonora. Também é possível perceber a instrumentalização das palmas, característica forte no coco do interior. As letras do Mestre Ferrugem, entre outras coisas, lembra o cotidiano do sertanejo, que vive na serra e é vaqueiro e tem como obrigação tocar o gado. Mas em seus versos também vemos alusão à vida cotidiana do litoral. A zabumba apresenta-se na musicalidade do coco na hora da reposta, na hora do refrão, como em outros cocos litorâneos. Enquanto isso, a letra é rimada pelo pandeiro e ganzá.

Em entrevista, realizada no dia 28 de maio de 2008, Mestre Ferrugem contou a este pesquisador parte da sua história no coco, e os desafios que já enfrentou. Falou dos seus cocos de repente, respondendo a desafios feitos na hora, de improviso, suas emboladas e as influências que recebeu. Ferrugem é um mestre de coco aberto às novas tendências na musicalidade do coco. A prova é sua aceitação aos instrumentos atípicos ao coco, como flauta doce e cavaquinho, conga, agogô, entre outros.

Nascido no dia 12 de dezembro de 1950, 58 anos, Wilson Bispo dos Santos, olindense, “carrega o coco na veia”. Ele conta que o apelido “Ferrugem” vem da época do colégio, por seu rosto ser cheio de sardas. “Botaram muita qualidade de apelido em mim, mas não colou nenhum, só colou Ferrugem” 11. Ferrugem começou a freqüentar coco ainda bastante criança, por ser raiz na sua família, tanto paterna quanto materna. Foi discípulo, como ele mesmo conta, até os 17 anos, sendo batizado pelos seus mestres com direito a banho de cerveja na cabeça e no pandeiro, sendo esse “cruzado” com a cerveja derramada. “Discípulo é aquela pessoa que carrega a bagagem dos cantores. Eu cantava, mas quando eles, os mestres, mandavam. O discípulo não pode passar na frente dos mestres”. Como todo Mestre teve, ou tem Mestre, Ferrugem fala dos que o influenciaram a cantar o coco. Dentre vários, ele cita Manoel Farias, Antônio Rochinho, Zé Pretinho, Luiz de Marcílio, Benedito Grande, Luiz Boquinha, Cachito, Fome, Ingüento, Calú Calado. Essas pessoas também foram Mestres daqueles que hoje são Mestres de coco em Olinda, como Galo Preto, Ana Lucia e Selma do coco.

A característica de disputa é muito forte e presente no coco de Mestre Ferrugem. A cantoria, principalmente no passado, era de cunho desafiador, uma vez que o coco era uma “batalha” de palavras. “Eu gostava de cantar muito, mas eu gostava mesmo era de derrubar cantor. Por que tem uns ‘cantozinhos’ sem-vergonha por ai que diz que é cantor sem saber cantar. Mas depois que eu comecei a cantar sério, eu acabei com esse negócio”, lembra, o Mestre, com nostalgia dos tempos de batalha no coco .

Ferrugem afirma que já compôs 208 músicas e que lembra de todas. Para ele, a letra parte da imaginação, que por sua vez, é ilusão. “Quando eu escrevo 5 ou 6 palavras doces, ai vem 3, 4 palavras salgadas. Quem escuta meus cocos, direitinho, diz que eles são muito salgados. Se tem mulher, eu canto pra mulher. Se tem homem, eu canto pra homem. Se tem doutor, eu canto pra doutor. Se tem promotor, eu canto pra promotor. Se tem professor, eu canto pra professor. Chega tudo em minha mente e os versos são feitos na hora (essa é a característica do repente). (...) Se tem uma roda de coco aqui, enquanto não estão cantando, todos são amigos. Agora quando estão cantando todos querem se mostrar, ser o ‘cancão’ de fogo”. Ferrugem explica que no processo de produção das suas letras, ele procura ordenar as consoantes. Segundo ele, elas, as letras, aparecem de repente, e daí ele as organiza no papel. Esse é o coco de embolada, que é trabalhado e oficializado como música, diferente do coco de repente, que sai na hora e é “registrado” depois do processo já criado. O coco de repente surge no decorrer de uma batalha, ou de uma criação individual, e também é feito pelo Mestre Ferrugem.

Ferrugem quando perguntado sobre as diferenças existentes no coco pernambucano, explica que só no litoral tem três tipos de coco: o coco de repente, o de embolada e o praieiro. “O coco praieiro é aquele que só tem o refrão e a resposta. O de embolada é esse que eu canto (escrito e ensaiado). Já o de repente é esse que Caju e Castanha canta (improvisado na hora)”. O coco de repente é mais presente quando a roda é feita nas comunidades e com os amigos. É quando a “brincadeira” do coco não precisa de ensaios e muito compromisso. O coco vigente nos palcos, nos eventos e shows é o coco de embolada, por já estar oficializado e ensaiado. Sobre as características dos cocos do litoral, do agreste e sertão, Ferrugem afirma que a principal diferença está no batuque. “O coco aqui de Olinda é batido de uma maneira, o coco do agreste já é batido de outra. O coco do agreste é quase a mesma coisa de uma ciranda. Ele não tem repente. No coco praieiro, quando o cantor ta cantando, ilustrando, versando a música, os instrumentos têm que cair
(baixar o som). Quando entra a resposta, os instrumentos voltam e se apresentam. Quando o cantor começa novamente, eles baixam novamente. Já o coco do agreste tem uma batida parecida com a da ciranda, que não tem ‘caída’ (na instrumentalização). Tanto faz o cantor tá cantando baixo, como alto, a batida é uma só. Ela não diminui nem aumenta. E isso dá muita diferença para o cara que se diz o cantor. Tem grupo que não canta com instrumento nenhum. É somente no pé e na mão”.

Ferrugem conta uma história curiosa sobre o princípio da utilização dos pés no coco agrestino e sertanejo: “Muitas vezes chegava uma pessoa convidando um amigo para tapar uma casa. Não tinha problema. Eram quinze, vinte homens, pois se colocava o barro no chão e todos maçavam o barro, cantando e batendo palmas. É por isso que tem muitos cocos por ai que não tem instrumento nenhum”.

Sobre a instumentalização do seu coco, percebe-se que o pandeiro é de marcação, pois começa e termina certo na música. Por várias vezes é esse instrumento que dita o ritmo dos outros instrumentos. Um outro instrumento de marcação de bastante importância para o Mestre Ferrugem é o ganzá. “O ganzá é um instrumento de marcação bastante importante, e nem todo mundo sabe tocar. Tem que aprender (...) As congas são instrumentos que te fazem subir e descer. Às vezes tu quer fugir delas, mas elas não deixam”. Ferrugem esclarece que a introdução do cavaquinho e a flauta doce, no coco presente em seu cd, servem para harmonizar a música. “Harmonia é uma pessoa começar e as outras pessoas encorpar. É por isso que todos os grupos têm a ‘obrigação’ de ensaiar (...) dinheiro é muito bom, mas harmonia é melhor”, brinca.

O Mestre é aquele que diz o que tem que ser dito na resposta do coco. É aquele que, na maioria das vezes, com o pandeiro, dita o ritmo do ganzá, zabumba, e outros instrumentos adotados pelo coco. Mas, por ser coco litorâneo, nas letras existem registros do dia-a-dia do pescador. Também há referencia religiosa em sua musicalidade, como é demonstrada na música “Nossa Senhora”. A característica contemporânea da musicalidade, além da inovação da flauta doce e do cavaquinho, está na última faixa do cd, “A derrubada – Chill Out” que mescla bits de música eletrônica e bateria sampleada, além da referência em inglês. Uma forte característica do coco interiorano na obra do Mestre Ferrugem encontra-se na segunda faixa do cd. A música “De longe ouvi uma voz que me chamou” é ritmada em acompanhamento, no seu refrão, que é o título da canção, por sapateados que seguem a afinação da frase cantada. A embolada do pandeiro não pára em nenhum momento, sendo esse o principal instrumento da canção.

Há músicas do Mestre Ferrugem que lembram o xote, ritmo voltado a linha do forró. A pegada do pandeiro é mais acelerada, usa-se o triângulo, instrumento mais difundido no forró e coco sertanejo, como o coco de Arcoverde, por exemplo. Congas são usadas, em forte referência às raízes africanas. A flauta doce é introduzida com evidência, em forma de solo e ditando os outros instrumentos. Essa referência condiz à música título do álbum: “Mestre quando canta, discípulo tem que respeitar”.
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11 Todos os depoimentos de Wilson Bispo dos Santos neste texto foram dados a este pesquisador, em vinte e oito de maio de 2008, na Agencia Sambada Comunicação e Cultura, Varadouro, Olinda.

De todos os cocos pesquisados nesse trabalho, o coco do Mestre Ferrugem é o que mais se aproxima dos “paradigmas” contemporâneos de introdução rítmica. Ou seja, a música feita por Ferrugem é dotada de instrumentos incomuns ao coco. Vale ressaltar que isso é perceptível quando o artista executa seu trabalho nos palcos, em apresentações comerciais. Ferrugem tem uma história carregada de superação, desafios, mas sempre com muita música presente. Ele teve outros ofícios, como marcenaria e carpintaria, mas sua alma é feita de música e foi feita para o coco. Seu coco se faz de forma que o povo mostra seu sentimento em respostas no refrão que conduz. Mas o seu grande estilo é o desafio, o repente feito na hora. Esse é o coco que nem sempre é mostrado nos palcos. Além dos seus Mestres, aqueles que conduziram, de forma direta ou indireta, seu aprendizado, está na trajetória de Ferrugem a forte influência do seu avô, João Francisco da Luz, que cantava o coco quando ele, Ferrugem, ainda era pequeno.

Como é natural nos mais antigos coquistas, para Ferrugem a tradição foi passada pela família. O pertencimento e a preservação se solidificam e se modernizam, uma vez que o seu coco é aberto para uma nova ritmia (introdução de novos instrumentos) e sua loa é tradicional e pulsante. Ferrugem é um coquista versátil, aberto a novas formas de fazer música e, antes de tudo, educado, sensível e carismático. O pesquisador Aloísio Vilela já havia registrado uma afirmativa sobre novas tendências na musicalidade do coco, que, de certa forma, encaixou perfeitamente no estudo do coco do Mestre Ferrugem. Registrou o pesquisador em sua obra O coco de Alagoas, Série Estudos Alagoanos, caderno V, Maceió-AL, 1961, divulgação do Departamento Estadual de Cultura:

A evolução do coco é um assunto interessantíssimo em virtude das inúmeras fases por que ele tem passado. As diversas modalidades em que vamos encontrá-los nas formas típicas dos cantadores, são uma prova eloqüente da riqueza e da originalidade desta feição da poesia popular de Alagoas. (Vilela, 1961, pág 25).

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